13
O TRUNFO
1
— O Marcello diz que amanhã saio do Rest.2 e recupero a memória — revelou Tiago, já enfadado. — Não preciso da tua ajuda para nada.
— E acreditas mesmo no que ele te diz?… Ainda não percebeste? Só quer livrar-se de ti. O que lhe interessa é o outro, o Hirpo.
— Não te devia ter contado nada.
— Devias era ter contado muito antes, se eu soubesse tudo desde o início não estavas nesta situação. Ouve lá, mais uma vez: não há garantia nenhuma de que te lembres seja do que for quando deixares o projecto. Nenhuma. O Marcello está a enganar-te.
O rapaz sentiu os músculos do rosto contraírem-se. Já chegara a desconfiar, sozinho, do que a irmã lhe anunciava agora no Rest. Mas repetira para si mesmo que não podia confiar em Teresa, antes de se estender no módulo de Fernão para o encontro.
— Ele não ia fazer isso… — contrapôs, molemente.
— Ele só se interessa pelo projecto. É um ambicioso, não joga segundo as regras. Toda a gente aqui na Bóreas sabe isso. Tu és acessório. Agora deixaste de servir: lixo! Se entretanto isso te estragou a memória, pior para ti.
— Não pode ser, ele não é assim. — Tiago olhou de novo para a pulseira que Teresa manipulara havia pouco. As dúvidas amontoavam-se. — Além de que o Curriculum pode ser perigoso. A Brísida disse…
— Ó Tiago, não me faças rir. A Brísida pode perceber umas coisas, mas não é uma engenheira, como eu. Ouve o que te digo. Tive trabalho para arranjar isto, mas é certinho. Se amanhã, na ligação de interacção, activares o código que te instalei… lembras-te de tudo. Mas nem vale a pena discutir. A escolha é tua. Se não quiseres, não faças nada. Prepara-te é para as consequências. Porque depois, quando estiveres fora do Rest.2, e continuares sem saber quem és, já será demasiado tarde.
Ao sair do módulo de ligação, passado um pouco, Tiago sentia-se agoniado. Apoiou-se à borda da cama de Fernão. Impossível ignorar o módulo, que ocupava grande parte do quarto dele, como um presente envenenado. O colega mantinha-se sisudo, Tiago calculou que a irmã lhe tivesse causado aborrecimentos. Por mais que se quisesse convencer de que ele, pessoalmente, não podia responder por uma acção de que não se lembrava, essa desculpa estava a ficar gasta. Optou por não falar naquilo, e sugeriu:
— E se fôssemos almoçar à cantina?
— Vou almoçar com a minha vizinha — Fernão voltou a olhar para o relógio de forma ostensiva. — Há que tempos que não passo lá.
Tiago percebeu que tinha de se ir embora. Levantou-se e dirigiu-se à porta de casa, mas embateu contra uma tábua de madeira do soalho que precisava de ser pregada ao chão. Aquela casa estava mesmo a cair.
— Ela… a minha irmã… Mandou dizer que não volta a aparecer aqui. Diz que o módulo agora é seguro. Mas enfim, tu é que vês… Desculpa lá qualquer coisa.
— OK. — Fernão tornava-se cada vez mais lacónico.
O outro saiu, desceu as escadas do prédio. No dia seguinte, tudo terminaria. Aquele fantasma que trazia dentro de si seria expulso e ele deixaria o Instituto. Entretanto, recebera uma convocatória para se apresentar no liceu na quarta-feira: a atribuição, com certeza. Teria apenas um dia para fazer contas com a sua antiga memória. Se a recuperasse, de facto, quando saísse do projecto.
*
Carola torceu o nariz ao abrir a marmita que o irmão trouxera de casa de Marcello: massa com legumes. Óscar bocejava, ainda trazia os ritmos trocados.
— O gajo disse que podia servir para o nosso jantar. Admite lá, tem bom aspecto.
— Tens mesmo a certeza de te quereres meter nisto, Óscar?
— Não quero ir já embora, isso é o que eu sei. Sossega, não é um contrato para a vida. Sabes que, comigo, nunca nada é para a vida. — Tentava aligeirar, mas ela não desarmava. — Ouve, não vou deixar-te aqui sozinha. Qual é a alternativa? Estás disposta a tornar-te noctívaga também tu?
Mas Carola não levava a ideia a sério. Se fugisse, abdicava automaticamente de tudo o que a avó lhe legara, e não ia deixar a casa da família ao Conselho. Além disso, não se via a fazer vida de mato. Pertencia ali, à cidade.
— Quando é que ele te disse que ia acontecer? — Ela ainda nem percebia em que medida Óscar podia ajudar Tiago a ficar melhor. Mas Brísida corroborara a história.
— Amanhã.
Naquele momento, pelas ruas de Lisboa, Elda seguia as indicações de um pedaço de papel amarrotado. Anunciara que ia dar uma volta ao quarteirão, e Júlia felicitara-a por sair enfim de casa. Se a mãe fizesse a mínima ideia… Mas nem ela própria sabia bem o que fazia, deixava-se conduzir como um autómato, enquanto as pernas lhe tremiam. Quando alcançou a esquina assinalada, e não viu ninguém, chegou a crer que ficaria aliviada, mas na verdade sentiu-se defraudada. Um rápido estalido de língua, porém, assinalou a presença: Fernão esperava, oculto, sob um vão de escadas. Elda dirigiu-se mecanicamente para o recanto, deixou-se esmagar contra a parede. Ele beijava-a com violência, à luz mortiça das lâmpadas eléctricas, tirava-lhe a respiração. Quinze minutos de desgaste, sem que nenhum deles proferisse uma única palavra.
— Espera. Tenho de ir — conseguiu ela dizer por fim, quando voltou a respirar.
A fome dele não se acalmara, via-se. Ofegante, o rapaz propôs:
— A minha casa. Queres ir?
— Não posso mesmo — calculara mal as distâncias, já ia chegar tardíssimo.
— Amanhã, então — intimou ele.
Através da janela do Torel, àquela hora, viam-se as sobras da cidade sob uma capa de nuvens cinzentas. Fora Bartolomeu a combinar o encontro, e Brísida aguardava que ele se decidisse a contar aquilo que tinha para lhe dizer.
— Conheci a Sofia, na semana passada — revelou ele, de modo abrupto, antes de repetir matéria sabida: — É o que me espera. Não tenho escolha.
— Já disseste. Olha, Bartolomeu, o que aconteceu entre nós…
— Não, eu quero pedir-te desculpa. Agi mal contigo. — Deu um suspiro profundo. Brísida ficou suspensa, à espera de uma continuação. — Isto é difícil para mim… Agi mal desde o princípio, acho que me agarrei a uma fantasia. Enquanto era só uma possibilidade em aberto, deixei correr, porque me fazia sentir mais… seguro, ou confiante, ou não sei. E é claro que tu és linda, eu acho-te mesmo especial, mas…
— Mas naquela noite tu não querias. — Ele baixou a cabeça, admitiu sem palavras. Brísida obtinha a confirmação do que sentira na altura. — Tudo bem. Eu se calhar também te pressionei, mas é que tinha percebido que…
— Fui eu que te mandei sinais contraditórios, desde o inicio. Eu sei.
— Vamos esquecer isto — e ela pousou as mãos nas dele. — Amigos?
— É o que eu mais quero. Achas que dá mesmo?
Ela passara a vida toda à espera de uma ocasião para usar aquela citação:
— Amanhã é um outro dia.
Marcello abriu a porta de casa.
— Olá Tiago, entras. O Bartolomeu saiu.
Desde aquela noite na sala óptica, Tiago não tinha voltado a falar a sério com o amigo. Na capela, na carrinha, no cemitério, Bartolomeu arranjara mil estratagemas para evitar que ficassem a sós. Na presença dos colegas, não o ignorava, mas reservava-lhe um tom de voz distante, afável mas completamente artificial, como se tentasse neutralizar qualquer intimidade. Mostrava-se desconcentrado, passava de uns temas para os outros, dava atenção excessiva a pormenores sem importância. Sabia que, no dia seguinte, ele saía do projecto, e não fizera qualquer tentativa de o contactar, como se negasse a realidade daqueles meses. Tiago encarava esse tratamento como uma humilhação.
— Posso ajudar?
— Entrega-lhe isto quando ele voltar? — e Tiago deu ao tutor um rolo embrulhado com papel pardo. Era o retrato que fizera dele algures no passado, e que fora encontrar numa gaveta do seu quarto, poucos dias depois de ter perdido a memória.
— Claro. Um presente? Mas anos dele é no Janeiro, não é?
Tiago não respondeu. Nem sabia quando era o aniversário de Bartolomeu. Sabia apenas o dia em que provavelmente o veria pela última vez.
Amanhã.
2
Chegara o dia. Marcello percorreu os seis módulos, observando o rosto de cada um dos jovens sob o vidro: Elda, Bartolomeu, Carola, Fernão, Brísida, Tiago, por essa ordem. Quantas vezes repetira aquele périplo, a imaginar o que poderiam estar a viver, no mundo virtual, os impulsores? Como sempre fazia para uma ligação de interacção, sentou-se na poltrona metálica, pôs o capacete. O visor permitia-lhe seguir a perspectiva de cada um. Desta vez, porém, seria diferente. Junto ao painel de controlo, um módulo adicional fora instalado. Óscar olhava ansioso para a tampa de vidro:
— Não me vai faltar o ar? — A ideia de ficar fechado sempre o angustiara.
— Tem abertura aqui, olha. Não te preocupa, é como dormir.
— Ninguém sabe disto, hã? Esta coisa do fantasma. Só a Brísida.
— Tiago sabe. O portador sabe sempre. Como vês, não estou a enganar.
Óscar confirmou que estava pronto, e Marcello deu início ao processo que resultaria na transmigração de Flávio Hirpo.
Transmitira as instruções a todos. Desta vez, os impulsores não reencontrariam o seu fantasma no Rest.2, mas valer-se-iam apenas da consciência de si mesmos.
É natural, não tens medo, tudo está em tua mente. A voz de Marcello dirigia-se ao mesmo tempo a todos e a cada um deles, e chegava-lhes directamente à consciência, como se fosse imaterial: Mesmo consegues sentir minha voz sem corpo, sim? Só o português dele continuava a ser o que era.
O lugar onde se encontravam era só névoa branca, um princípio de substância informe. Nada podiam sentir ainda e não tinham meio de estabelecer contacto entre si; e, no entanto, nunca de forma tão intensa tinham alcançado a percepção de que estavam juntos. Um conhecimento confuso, quase vertiginoso, mas que lhes trazia paz.
O tutor assegurou-lhes que aos poucos se abstrairiam da sensação inicial de confinamento e encontrariam um equilíbrio. Cada um deveria apenas seguir a sua intuição, achar o próprio caminho. Como ioga, explicou, sem lhe passar pela cabeça que aquela geração não podia saber o que fosse o ioga. Procura o lugar mais confortável para ti. Se sentes sair de ti mesmo, não faz mal.
Elda começou por procurar corpo para a voz que lhe falava. Se encontrasse o corpo, estaria salva, tentou pensar — mas, como estava privada de palavras, não pôde. Se ao menos dispusesse de uma língua, mesmo de empréstimo… Buscou no mundo branco um rosto, um braço, uma mão. Agia segundo a experiência, pois uma mão já viera em seu auxílio em aflição semelhante. Mas ninguém veio. Na névoa não se distinguia uma ruga, um sulco, uma linha. Procurava uma linha apenas. Uma linha rosada, quase imperceptível, talvez outra paralela, depois outra: uma impressão digital, um círculo hipnótico. E lá estavam, resultavam do seu esforço de imaginação. Fez desses traços um ponto de partida, para daí chegar ao poro, à carne, ao sangue, ao osso. E depois… depois o quê? — o átomo? Mesmo que pudesse obter a palavra, Elda não saberia o que era um átomo; e era provável que não compreendesse mesmo se lho explicassem. Não tinha importância: naquele momento, não tinha de compreender nada. Só havia aquele corpo, e era o seu corpo, o corpo que lhe fora cedido havia tantos anos; e que, por fim, só naquele momento lhe pertencia plenamente.
Bartolomeu, por sua vez, sabia com certeza qual era o lugar onde se sentia mais confortável: devagar, foi transitando para essa realidade que conhecia bem. A névoa passou de branca a azul, de imaterial tornou-se líquida. Aos poucos, a sua consciência foi adquirindo um tipo de sensibilidade. Mas o que esperava vir a sentir — os músculos a baterem na água, o prazer físico que sempre atingia ao perder-se no oceano sem limites — não lhe foi dado. Bartolomeu não era o seu corpo no mar; era o próprio mar na sua vastidão. Sentiu-se derramar nessa existência, libertar-se de travões que, percebia agora de forma intuitiva, sistematicamente o retinham. E estendeu-se por inteiro sobre a terra. Ao tornar-se água, acedia a uma memória antiga, embebida nele: como uma energia em repouso, a memória de toda a matéria imersa naquele grande corpo aquático ressurgiu, actual e passada, sensível e incompreensível, num só momento. Bartolomeu era também essa memória da água.
Carola era o cão; não a palavra mas o ser. Não percebia como, mas estava certa disso. Sabia as coisas assim, sem palavras ou conceitos, como sabia que o seu nome era aquele u demorado que lhe era dirigido por vezes. Deixava-se guiar pelo instinto, corria pela terra fresca, que se tornava matéria consistente sob as patas. Ela era aqueles flancos quentes, o peito arfante, a língua pendente, a multiplicidade de cheiros que lhe chegavam de todos os lados. E era também o seu próprio cheiro, o próprio cheiro de si mesma, interno e externo, que reencontrava agora sem nunca o ter conhecido. Era ainda a vaga recordação do seu aspecto humano, o procurar esse outro ser, de forma muito atenta, com o faro e a audição e a vista; a tentativa angustiada de distinguir no mundo claro e escuro uma silhueta que o tornasse concreto — e com isso a enchesse de alegria. Era todo esse conjunto de coisas, presentes e ausentes, uma realidade palpável e afectuosa, esquecida de tudo o mais.
Fernão não tinha queda para experiências místicas: estava farto de enganos. Só queria reencontrar um espaço familiar. O seu quarto era um sítio tão bom como qualquer outro para esperar o fim da ligação. Afinal, o Rest.2 tornara-se isso, um tempo morto. Não foi capaz, porém, de ressuscitar as suas quatro paredes na névoa densa, que lhe pesava como cimento. Uma janela, uma cadeira, a cama: nada. Sabia que tinha de relaxar, para desbloquear a situação, mas isso não estava no seu temperamento; apenas conseguia ficar mais enervado. Chegou-lhe então um som fugidio de harmónica, que se vinha insinuando. Concentrou-se em captar a melodia dolente, fê-la crescer em si. Até que se tornou distinta, e ele foi acolhendo as suas variações, deixou-se soerguer e recolher nelas, de modo empático. Vibrava, não em sintonia com o som, mas no próprio som, numa integridade que era absoluta, e ainda assim decantável. Era ele mesmo aquela onda que se expandia em velocidade e se assumia como única realidade.
Brísida fez do informe a linha em que mundo real e mundo reproduzido se separavam e uniam. O magma assustador cedeu; e de forma prodigiosa ela reconheceu no planeta virtual o molde que lhe esteve na origem. Foi capaz de abarcar, de maneira conceptual mas com nitidez e precisão, a fonte comum: as memórias dos que caminharam na terra antes da catástrofe, a massa que originara o Rest, num acto de boa vontade. Deixou que essa intenção original a preenchesse. Realidade e simulacro interagiram num só cosmo, simbólico mas verdadeiro; e tornou-se possível fazer dialogar verdade e imaginação. Então, sem proceder de modo consciente, mas apesar disso num movimento deliberado, Brísida deu um passo em frente. Procurou outra fronteira, outra passagem. Tentou abolir sem procedimentos lógicos os confins com um outro universo que pressentia, em que se tinha visto mover; os limites eram intransponíveis, mas podia pressenti-los, podia olhar para essa realidade alternativa.
O combate de Tiago, esse, era mais árduo.
*
Não lutes contra mim, deixa fluir, ouviu Tiago. Decididamente, a voz não pertencia a Marcello; nascia dentro de si. Se deixasse vir à tona aquele ser, ele tomaria conta de tudo, usurparia a sua existência. Era necessário encontrar um lugar, mas temia não ter tempo suficiente. Os colegas já estavam a salvo, imaginou, cada um deles. E o tutor não lhe podia valer. Se aquela voz pertencia a Flávio Hirpo, só tinha de o deixar passar, segundo as indicações que recebera. Era a forma de expulsar o ente estranho que se alimentava dele, o consumia. A transmigração seria a sua alforria, uma oportunidade para ficar a sós consigo mesmo, para se reencontrar.
Porém, a luz que vinha com Flávio incandescia-o. Era uma praia, um dia de Verão, a claridade impossível da praia de Odeceixe. Identificava rostos e vozes, nomes: Brísida, Fernão, Elda, Carola, Bartolomeu. Reconhecia aquelas memórias de outra ligação de interacção, mas não lhe pertenciam: ele nunca nadara naquele mar, não comera alperces, não brincara com o cão. Tratava-se de outro planeta, no qual ele não cabia. Para se afirmar, a presença de Flávio aniquilava-o.
Tem calma, é só um instante. De modo a não perder o controlo, Tiago procurou agarrar-se a memórias suas, que o outro fantasma não pudesse vampirizar. Agora, deixa partir essas memórias, pediu-lhe a voz de Flávio, e Tiago supôs, num pavor absoluto, que o fantasma daquele estranho levaria consigo até o que lhe fora dado viver ao longo dos últimos meses, desde que se conseguira integrar de facto no projecto. Nada lhe restaria se perdesse também essa soma.
A voz continuava a dirigir-se-lhe, mas Tiago deixara de atender, pois Flávio era o inimigo. Precisava de contrapor-lhe a sua própria vontade. Como evitar dissipar-se em imagens falsas, memórias alheias? Tinha uma arma capaz, lembrou-se: o dispositivo de que Teresa o dotara na véspera. Bastaria activá-lo para revelar a verdade, garantir uma memória real, libertar-se do jugo do ocupante. Mas o Curriculum era perigoso, traía sempre. E, de qualquer modo, para que funcionasse, o propósito requeria uma acção precisa, a activação do código na pulseira, um gesto concreto de fantasma; naquele momento, ele não era sequer um fantasma, não tinha pulso.
Estava a ser expulso daquela história. A praia, seis jovens, eis tudo o que existia. Por mais que se esforçasse por distingui-los, eram cada vez mais apenas uma denominação comum: os impulsores. Conhecera-os, mas isso fazia parte de um passado em extinção. Aquele rapaz moreno, que nadava no mar: perdera já o seu nome?
Viveu um momento de pânico. E foi então que lhe surgiu, como uma tábua de salvação, a certeza inabalável de que, naquela ligação, tudo era mental — até a activação de um código que o libertasse. Assim como não precisava de encorpar o seu fantasma para estar presente, não precisava de tocar na pulseira para que esta existisse. E, precipitadamente, sem saber como, e já sem sequer perceber bem por que o fazia, activou o código que, segundo a irmã, revelaria o seu Curriculum.
*
Ao retirar o capacete, Marcello sentiu um zunido prolongado, o campo de visão alterou-se, em segundos a testa alagou-se de suor: indícios de um desmaio iminente que não podia acontecer. Agarrou-se à poltrona com os braços trémulos, engoliu uma golfada de ar e, como reacção, teve de esticar o pescoço para o lado para vomitar. Com dificuldade, apoiou o corpo contra o painel de controlo, repetiu para si mesmo que era imperioso manter-se desperto. Lá se conseguiu arrastar até à mesa, despejou a água fresca no copo e sorveu-a em goles contidos. Pernas bambas, uma guinada no estômago, a cabeça pesada. Forçou-se a mastigar dois cubos de açúcar. Primeiro recuperar as forças, depois o ânimo. Tinha agora de agir com clarividência. Limpou o rosto com uma toalha, levou o copo para perto do painel de controlo, estendeu-se de novo na poltrona.
Em pânico, calculou as suas opções. Algo motivara um conflito no exacto momento em que Óscar deveria receber o fantasma, o processo de transmigração abortara. Flávio existia ainda no corpo de Tiago. Não conhecia a explicação lógica para o sucedido; havia só o facto, inalterável, de que Tiago morreria dentro de horas se nada fizesse e, pior, o fantasma de Flávio desapareceria de vez. Por se encontrarem unidos de maneira inextricável naquela ligação, também os outros impulsores tinham sido atingidos por repercussões do choque ocorrido. Enquanto reflectia no que fazer, podia, pelo menos, aliviar o seu sofrimento.
O primeiro que salvou foi Bartolomeu, por compaixão. Com o impacto, o fantasma do rapaz materializara-se de súbito, algures a meio do oceano. Porém, desenvolvera de imediato uma reacção alérgica à água salgada. Suportava dores excruciantes, como se o mar queimasse o seu corpo. O mínimo movimento que tentasse fazer aumentava o suplício, mal conseguia respirar. Bartolomeu, fecha os olhos e não resista, comandou a voz do tutor. Foi com dificuldade que o rapaz executou a ordem. Mas, assim que o fez, viu-se estendido na areia, o corpo lacerado, ainda coberto de gotas que avivavam o seu martírio.
Tugúbio gania, desorientado, a correr sobre si mesmo, mordia a própria cauda sem atinar com o motivo da agonia. Foi necessário acalmar o cão, fazê-lo sentir-se seguro, antes de o dissociar do fantasma de Carola. A rapariga despertou, aturdida, num pequeno jardim, junto a um lago onde se espelhavam palmeiras. Reconheceu a estátua da guardadora de patos, que, no mundo real, jazia no tanque seco do Jardim da Estrela. Ainda pouco consciente, viu o cão correr para os portões do ingresso. Chamou-o pelo nome, e o animal virou o focinho por um momento. Ele já não pode ficar perto de ti, ouviu dizer a voz de Marcello, tens de deixar o cão ir embora.
Marcello procurou ser sistemático: com Tiago, nada a fazer para já; e Brísida teria de ser a última; havia que escolher entre Elda e Fernão. Optou por socorrer a rapariga. Elda era naquele momento o próprio corpo, mas, tal como os outros, sofria um efeito de rejeição. A sua consciência sumira-se, no zénite de dor provocado por veias dilatadas e músculos atrofiados. Condoído, Marcello compreendeu que não lhe restava alternativa: para salvar as suas faculdades no Rest.2, seria obrigado a torná-la incorpórea. Conseguiu associar-lhe um halo, como um fantasma. E foi a esse contorno difuso de luz que se dirigiu, passado um pouco. A resposta veio, na voz de Elda, mas como por telepatia: Marcello… o que aconteceu?
Fernão sentira que o impacto tinha causado um estrondo abrupto, uma disrupção — mas, desde então, o vazio. O mundo era um quarto escuro. Sentia apenas a própria presença no Rest.2. Nem imagem nem som, nem tacto nem sensação: uma falha que ameaçava eternizar-se. Durante um instante de terror, recordou o pesadelo de infância: ser sepultado num estado de semivigília, condenado à consciência eterna sem poder contar com nenhum sentido. Não tardou a perder o conhecimento. Quando reabriu os olhos, pouco depois, viu-se na antiga cama do quarto de Setúbal. Palpou o seu fantasma, humedeceu os lábios. Glicínia, a mãe, à cabeceira, movia os lábios, mas não lhe chegava som nenhum. Pediu-lhe para falar mais alto, e foi incapaz de ouvir a própria voz. Estava surdo.
Marcello curvou-se, alcançou com a mão o copo de água e bebeu mais uns goles. Salvara os primeiros quatro, apesar de tudo. Imaginava o quanto estariam confusos e como precisariam de apoio, mas para já não podia fazer mais nada por eles. Deitou um olhar ao corpo de Óscar, estendido no módulo a seu lado. Brísida e Tiago, mas sobretudo Flávio, ainda estavam em perigo. Fosse como fosse, tinha de salvar o projecto.
*
— Ele diz que houve um acidente que me fez rejeitar o fantasma do Flávio — resumiu Óscar, quando reapareceu à frente de Brísida por entre carros mal-estacionados. — Já não o posso receber, é como uma alergia. Vocês os seis também desenvolveram rejeições. A tua rejeição é… ao Rest? Mas como é que pode ser? Estamos no Rest!
Brísida não parecia assim tão espantada. Era pragmática:
— É reversível? O Marcello diz que consegue resolver?
Óscar anuiu com um murmúrio gutural.
— Acha que sim, mas não já. Precisa de tempo, e de meios. Mas não faz sentido. Se rejeitas o Rest, como é que podes estar aqui?
— Acho que isto aqui não é o Rest. É outra coisa. Tu não podes perceber, és um novato — Brísida não queria ser arrogante, mas não dispunha de muito tempo.
Estavam os dois sentados no chão, no meio de um parque de estacionamento. Ela já tentara descruzar as pernas e levantar-se, mas era incapaz, como se a tivessem pregado ao asfalto; já ele tinha aquela capacidade inexplicável de transitar entre realidades, desaparecer da sua vista por segundos para voltar a materializar-se pouco depois.
— Então, já que és tão experiente, explica-me por favor como é que eu consigo andar neste vaivém. Se o Marcello diz que nem cheguei a criar um fantasma.
Era de facto difícil acreditar nisso com o rapaz à sua frente, a fazer aquele gesto de pentear uma madeixa atrás da orelha. Mas ela não tinha resposta para o enigma. O que sabia era que reconhecia aquele local, do seu Curriculum. Ali estava o prédio alto onde sabia que morava, a rua em forma de curva onde o pai a esperara no carro, para lhe perguntar pela escola, ela queixar-se da professora. Era outra realidade. A ideia era vertiginosa. Tentou torná-la aceitável para ele:
— Ouve, eu sei que isto soa estranho, mas diz-lhe que isto não é o Rest.2, e nem o Rest.1, aliás. Diz-lhe que estou numa… numa espécie de fronteira. Para outra versão do mundo…
Ela pronunciou as últimas palavras com temor, consciente de que ele a podia considerar chanfrada. E Óscar levantou uma sobrancelha, com efeito, mas fez o que ela lhe pediu. De repente, desaparecera da sua frente. Ela aproveitou para refazer o movimento de dedos, de modo a tirar teimas: a pulseira não se materializou. Lógico. Se não era o Rest, não havia portais para abrir.
— OK, agora é importante — retomou Óscar, com ar comprometido, ao reaparecer. — Não sei se ele acredita em ti. Mas o processo correu mal, o fantasma do Flávio ainda está dentro do Tiago, e há um conflito, uma coisa assim. O Marcello está a ficar sem tempo. Se não se fizer nada, morrem os dois.
— Mas o Flávio já está morto! — exasperou-se Brísida. — Não vai pôr em risco a vida do Tiago por causa… Que tal eliminar simplesmente o fantasma do Flávio?
— É impossível — afirmou Óscar. Ao ver que ela tentava decifrar o tom peremptório, explicou: — Ele imaginou que tu fosses propor isso.
— Bem, já percebi — e Brísida fez os cálculos em voz alta: — Ele precisa de um corpo sem fantasma. Tu já não o podes receber, porque desenvolveste a tal rejeição ao Flávio. E eu neste momento não tenho fantasma no Rest.2…
Óscar seguiu-lhe o raciocínio, e imobilizou-se quando percebeu o que ela queria fazer. Era destemida. Pediu confirmação da mensagem que devia transmitir:
— Então, é para lhe dizer que te pode usar como portadora?
Brísida acenou a cabeça com seriedade. Não ia deixar Tiago morrer.
E Óscar evaporou-se, de novo por um tempo prolongado. Era a primeira vez que via um rapaz ruivo, pensou ela, naquele momento de inquietação. Sabia que ainda existiam, mas eram cada vez mais raros. Quando ele voltou, vinha com cara de caso.
— Desembucha — disse Brísida, pronta para tudo.
— O Marcello diz que a estangr… a transgrim… olha, não sei dizer isto: que a transferência é possível. Que tu podes receber o fantasma, por enquanto, até se encontrar outro portador. Essa é a parte boa. Mas há um problema: para o Flávio ficar alojado no teu corpo, digamos assim, tu não podes sair daqui, desta… fronteira.
Brísida esbugalhou os olhos. O que queria o tutor dizer com aquilo? Voltou a tentar levantar-se, em vão. Ia ficar de pernas cruzadas até arranjarem outro substituto? Óscar contextualizou:
— Diz ele que se regressas ao módulo agora, nestas condições, depois não consegues voltar a entrar no Rest.2. Isso, pelos vistos, é tão problemático para ele como perder o Flávio. — Óscar sorriu com metade do rosto. — Não se pode dizer que este projecto seja simples, pois não?
— Nem fazes ideias. Mas ele não está mesmo a sugerir que eu entretanto fique aqui parada à espera até ele encontrar um portador, pois não?
— Não, ele propôs outra coisa…
Sondava-a, antes de expor o plano. Até onde iria a coragem dela?
3
A experiência por que passara embotara-lhe os sentidos. Elda roçou um dedo no outro; tinha um corpo. Ouvia um sussurro, mas ainda era difícil entreabrir as pálpebras. Já não era o Rest.2. Encontrava-se numa divisão fria, à luz de grandes lâmpadas brancas, e podia arranhar o colchão com as mãos. Alguém se movia ao longe. Onde estava, num hospital? Alinhavam-se outras macas junto à sua, aquele parecia Tiago. Cerrou os olhos, demasiado exausta para pensar.
Quando acordou de novo, sentia-se mais capaz, mas, ao tentar alçar o tronco, as costas doíam-lhe. Ainda estava amassada.
— Sentes-te bem? — era Carola, a chegar-se à sua maca.
— Onde estamos? — perguntou Elda, com medo dela.
— Uma sala de recobro, na ala hospitalar do Instituto — explicou a colega. Continuava a usar termos que ela não entendia. O que era recobro?
As macas estavam ocupadas por colegas: Fernão olhava para o tecto, apático; Bartolomeu, sentado, mergulhara a cabeça nos joelhos, como se quisesse desaparecer. Todos vestiam batas brancas, como ela. Tinham com toda a probabilidade passado por uma inspecção médica. Consultou o relógio de parede. Já era de noite.
— Estiveste a dormir. Muito — Carola parecia contar as palavras.
— O que é que aconteceu? Eles estão bem?
— Houve um choque qualquer. O Fernão perdeu a audição, lá no Rest.2. O Bartolomeu… Deixa, não te preocupes com isso, agora. Eles aqui estão bem.
— E tu? Também perdeste…?
Carola fez uma careta de incómodo. Via-se que cumpria uma missão humanitária, mas não iria além disso. Era o que faltava falar-lhe agora do Tugúbio. Confidências, não. Pormenores, não. Contaria o que tinha a contar, e foi o que fez:
— Tu ficaste sem corpo. — Elda olhou imediatamente para os braços, e a colega apressou-se a precisar: — Lá! Lá no Rest.2. Aqui, estás inteira.
— Mas é para sempre?
— Não sei. O Marcello diz que vai tentar arranjar uma solução.
Elda relembrou aqueles momentos finais no Rest.2. Depois da dor, não sentira mais nada, nenhum músculo, nenhuma impressão física. Ainda nem conseguia apreender as repercussões da alteração. O que é que mudava, em concreto? Ou não mudava nada?
Olhou de novo em direcção a Bartolomeu. Ele recostara a cabeça na almofada, fez-lhe um aceno silencioso, de resignação.
— Os outros? A Brísida, o Tiago?
— O Tiago está bem, ainda está a dormir, noutra sala — e Carola procurou com a mão, sem saber para onde apontar. — A Brísida… é mais chato.
— O que é que se passou?
— Os médicos já a viram, e veio aquela enfermeira que vive com ela. Parece que não há perigo, pelo menos é o que o Marcello diz. Tiveram de a induzir em coma. — Carola marcou uma pausa, para a outra digerir a informação. Elda não piscou os olhos. — Mas um coma ligeiro. O Marcello diz que é questão de dias, ou semanas, até ela poder acordar. Não me perguntes porquê. Não percebo o que se está a passar.
Elda conhecia aquele tom. Carola sentia-se zangada.
Então, lembrou-se de que havia mais alguém, perguntou depressa:
— O teu irmão, desculpa! O Óscar… Como é que ele está?
— Tudo bem. Livrou-se disto sem problemas. Até já foi para casa.
Carola não queria falar de família com Elda. Desviou o assunto:
— Olha lá uma coisa importante. Diz o Marcello que para já não nos podemos ligar ao Rest.2. O corpo ainda está a recuperar, pode ser perigoso.
— Sim, está bem. Também, quem é que se quer ligar?
E Carola parecia dar por encerrada a tarefa: estava informada. Elda sentiu na outra a ansiedade de quem espera permissão para ir embora, e disse que sim com a cabeça. Quando se viu de novo sozinha, voltou a passar a mão pelo braço. Tinha um corpo.
*
Ele reconhecia logo os passos de Marcello.
— É tarde já, Bartolomeu. Vais para casa?
— Não. Vou ficar aqui até ele acordar.
Marcello aproximou-se da cabeceira. Tiago dormia um sono pacífico.
— Sabes que é bom mesmo que ele dorme bastante…
— Então vou esperar bastante. Não me importo.
— Estás impressionado com Brísida. Mas não tens medo. Não acontece nada.
— Enquanto não o vir de pé… — E então Bartolomeu reagiu às palavras do tutor: — É claro que estou inquieto com a Brísida. Quantas vezes já nos disse que está tudo bem, e depois… Não dá para confiar sempre.
O tutor garantira que a colega não corria perigo, e a enfermeira Neuza confirmara que «a menina» dormia como num sono, sob as atenções dos médicos. Não lhe bastava. E se a colega tardasse a retomar consciência?
— Vou contar-te uma coisa, mas não dizes ninguém — decidiu Marcello. — Coma foi decisão de Brísida própria. Era única forma de ficar tudo bem, tens de acreditar. Ela sabe que não tem risco, que vai voltar. Em Brísida, confias?
— Confio… — admitiu o rapaz, passado um momento.
Marcello lançou-lhe um sorriso, como um desafio, mas ficou à espera de resposta. Por entre aquelas quatro paredes castanhas, a amargura de Bartolomeu era palpável. Carola passara um par de horas ao seu lado, a expressão de desalento não se alterara. Marcello limpou os óculos, puxou por ele:
— Estás muito triste, não é? Com a alergia?
Horas antes, quando despertara na sala asséptica do Instituto, o rapaz inspeccionara com ansiedade os braços, à procura de sinais de queimaduras. Por momentos, sossegou, convencido de que tivera um pesadelo. Depois, compreendeu: claro que o corpo não reflectia nenhuma ferida; a reacção terrível acontecera, de facto, mas no Rest.2. Quando Marcello se abeirou da sua maca, com ar pesaroso, desconfiou logo de algo sério. E a notícia caíra, como uma sentença cruel. Bartolomeu criara uma alergia à água do mar, não poderia voltar a nadar no mundo virtual.
— Claro que estou triste…
Na altura, ao ouvir o veredicto, sentira que lhe era vedado o prazer de viver. Em breve partiria para Faro, casar-se-ia com Sofia, perderia o espaço de autonomia que o projecto lhe trouxera. Confusamente, atribuiu tais mudanças à alergia, quando na verdade todas elas eram já um dado adquirido. Uma injustiça, uma traição. Toda a vida lhe tinham anunciado um futuro radiante, e via agora que não passava de uma mentira.
— … mas não é isso, não é a alergia.
Marcello não soube como interpretar a confissão.
Quando Bartolomeu vira Carola, e Fernão, e depois Elda, saírem da cama, e se apercebera de que Tiago ainda não despertara, foi como se um raio eléctrico o tivesse atingido. Podiam dizer-lhe que era questão de horas, enquanto essas horas não passassem não podia sentir-se vivo. Afirmou, como se o informasse de um estado de coisas:
— Ele contou-me. O Tiago contou-me que vai abandonar o projecto.
O tutor não esperava aquilo, mas afastou o cenário com a mão:
— Não, não. Tiago agora tem de continuar — e Bartolomeu ficou de boca aberta.
Como explicar? De modo a garantir o regresso de Brísida, Marcello tivera de estabelecer um vínculo indissociável entre os seis participantes no projecto. Só um espaço comum, de que todos fizessem parte, a que todos pertencessem inextricavelmente, garantiria o regresso de Brísida ao Rest.2, quando conseguisse enfim transmigrar o fantasma de Flávio para outro portador. Regras diferentes, e Tiago passava a fazer parte do lote, convertia-se de facto em impulsor; mas desta vez não tivera escolha.
— Vai continuar? A sério? — Bartolomeu não podia crer; mas, ao mesmo tempo, não precisava perceber.
Quando Marcello o deixou de novo sozinho, o rapaz retomara a esperança.
Tocou nos dedos frios do amigo. O coração recomeçou a bater-lhe com força, como na noite em que o abraçara, num quarto transformado em praia. Era um sentimento assustador, mas poderoso. Agora que se encontrava a sós consigo mesmo, e ao mesmo tempo na presença silenciosa de Tiago, tornava-se claro que a possibilidade de o perder era para ele muito mais terrível do que a perspectiva de não voltar a nadar.
O que fazer com aquela certeza?
4
Fernão aproximou-se de Elda, que estava sentada à mesa da sala da impulsão, procurou as frases certas:
— O Marcello diz que podemos ir para casa. A Carola já foi. Acho que eu também vou andando…
Elda levantou a cabeça. Não era uma tentativa de comunicação. Fernão não lhe dirigira a palavra depois do despertar, ela não ousara perguntar-lhe como estava. Aquela informação era um sinal, uma palavra-passe para retomar o modo anterior entre eles.
Juntou a coragem necessária para perguntar, olhos nos olhos:
— Como é que estás?
Fernão levou quase outro choque. Não sabia o que responder. Não tinham aquele tipo de relação, não eram amigos. Arqueou as sobrancelhas, tentou defender-se com um ar sobranceiro; mas acabou por se sentar em cima da mesa.
— Hoje foi um bocado mau. E a Brísida… — Sobre ele, não falava, mas pelo menos reconhecia que faziam parte da mesma realidade. — Tu estás bem, piolho?
— Acho que sim. Ainda não percebi. O que vai mudar.
— Não te rales, és mestre em safar-te — estimou ele. E acrescentou com o sorriso que ela aprendera a reconhecer: — E, depois, certas coisas não têm de mudar…
Era outro sinal. Elda baixou os olhos, nervosa, à espera que ele se decidisse a ir embora, mas Fernão não se deu por vencido. Olhou para o corredor a confirmar que não havia risco, debruçou-se sobre ela, afastou-lhe o cabelo do rosto.
— Anda comigo — ciciou-lhe ao ouvido, enquanto lhe pressionava o queixo.
— Não — disse Elda.
Não era um suspiro desta vez. Ele imobilizou-se, desconcertado.
— Não, Fernão — reiterou ela, e ganhou coragem. — Não quero.
O rapaz retirou-lhe a mão da cara. Via-se que ela tinha de fazer esforços para falar:
— Não quero continuar a fazer isto. É estranho e… baralha-me.
— Achava que querias. — Fernão estava sinceramente confuso. — Então, não gostavas…? O que aconteceu nestes dias… tu não querias?
— Queria — admitiu, envergonhada. — Mas não posso continuar. Não assim.
— Ah… OK. OK, então…
Sentiu-se vexado. A rejeição pacífica ainda o feria mais.
Elda continuava acabrunhada. Passou-lhe pela cabeça que, se lhes fosse dado recomeçar tudo outra vez, poderiam ter-se entendido de forma muito diferente. Mas era um pensamento idiota, nem valia a pena dizer isso.
— Vou ficar aqui, com o Bartolomeu — decretou ela, de forma inútil.
— Pois, claro. Se é assim…
E Fernão levantou-se, foi para casa, a remoer pensamentos negros.
O mais fácil seria culpar Elda, mas no seu íntimo achava que era justo que ela o recusasse. Se pesasse as suas acções ao longo daqueles meses, teria de admitir que perdera o rumo por completo. Fizera escolhas erradas, abdicara de oportunidades que não ressurgiriam, enveredara por caminhos ínvios. Os outros não conheciam a mínima parte do que fizera. Desbaratara um semestre de liberdade apenas para comprovar a si mesmo o que era: um aleijão. A surdez experimentada no Rest.2 era só outra ilustração desse pressuposto.
Chegado ao seu prédio, subiu as escadas de ombros vergados, passou pelo corredor onde conhecera Lisa, meses atrás. Ao abrir a porta com a chave que guardava no bolso, embateu mais uma vez contra a tábua do soalho que, havia uma eternidade, precisava de ser pregada ao chão. Apesar da hora tardia, sentiu a necessidade de consertar pelo menos uma coisa na sua vida.
Desceu ao apartamento do senhor Carmelo, o responsável pelo prédio, e bateu-lhe à porta para pedir um martelo emprestado. Não o obteve sem maus modos, que aliás retribuiu de bom grado, queixando-se de que a casa estava podre. Quando empunhou por fim o utensílio com a mão esquerda, sentiu crescer em si uma fúria que o levou a imaginar que poderia com facilidade partir a cabeça do vizinho com aquilo. Em vez disso, escalou de novo os degraus, cheio de raiva.
Chegado ao quarto, bastaram-lhe três ou quatro batidas para pregar a tábua ao chão. Tão simples. Resolvera a situação, mas a ira não se aplacara. E então apareceu-lhe debaixo do olho, como símbolo do seu descarrilamento, o módulo enorme, absurdo, a que aliás já nem se ligava. Sem pensar duas vezes, investiu com o martelo a cobertura de vidro, que se estilhaçou em mil pedaços. Sentiu-se logo vingado, mas não bastava: com um ronco, ergueu o martelo e desfez, numa sanha imparável, aquele símbolo do período que findava. A cada amolgadela, a cada componente definitivamente partido, uma libertação. Se os seus erros eram irreparáveis, tinha pelo menos a oportunidade de se livrar daquele estorvo.
*
Carola seguia o homem, receosa, pelo ingresso da igreja do Santo Condestável. Era surpreendente que àquela hora se pudesse ter acesso ao local; mas isso era o menos. Perguntava-se como é que Virgílio conseguira entrar na cidade e o que fazia ali, a dois passos de sua casa.
Era a primeira vez em muitos anos que o via fora do Rest, e, sem motivo, pareceu-lhe mais envelhecido do que nos encontros virtuais. Apoiava-se numa cana, não porque caminhasse com dificuldade, mas talvez porque a visão escassa não lhe permitisse antecipar obstáculos. Foi assim, a bater com o bastão no chão, que atravessou o corredor central da igreja deserta. Carola manteve-se na sua peugada, e foi sentar-se junto a ele no primeiro banco.
— A minha avó morreu — foi a primeira frase que disse, como uma justificação.
— Eu sei. Os meus pêsames.
Havia velas acesas junto ao altar, mas Carola decidiu que ele não poderia ter feito também isso. O cheiro a cera deixava-a desconfortável, lembrava-lhe o velório.
— O meu irmão está à minha espera… Não posso demorar muito. — e Carola olhou de novo para trás. Receava que alguém pudesse aparecer de repente; ou então que ninguém aparecesse, caso precisasse de ajuda.
— Não te preocupes, estamos sozinhos.
— É que não estou a perceber… Porque é que…
— Vim contar-te uma coisa. A propósito da tua avó.
Ela ficou de sobreaviso. Não esperava aquilo. E ele perguntou, com a voz rouca:
— Disseram-te de que morreu?
— Derrame cerebral…
— Sim, exacto. Não te mentiram.
Inesperadamente, Virgílio passou-lhe a mão pelo ombro, como que para a confortar, ou controlar. Continuou:
— Descontrai, Carola. Vais ver que o que tenho para te dizer interessa.
A rapariga não era capaz de reagir. Imóvel, aguardava a clarificação.
— Não mentiram, mas não disseram tudo. Não disseram o que causou o derrame.
— O que causou… Como assim?
— A tua avó foi obrigada a ligar-se ao Rest. Ela não queria, devia estar consciente de que era perigoso. Já era uma pessoa de idade, objectora… Era previsível que um acidente pudesse acontecer. Mas alguém a forçou. Alguém que sabia o que estava a fazer.
— O Rest… foi com o Rest? — balbuciou Carola. Mas então fora um assassínio? — Não, não pode ser… Isso não faz sentido.
— Queriam eliminar a tua avó — prosseguiu Virgílio, sem ligar. — Alguém com conhecimentos do Rest.
Carola pensou logo num nome, mas rejeitou-o. Não havia motivos. Que motivos havia?
De repente, veio-lhe uma grande raiva daquele mundo que nada trazia de bom. Num só momento, passou em revista as experiências de interacção dos últimos meses, recordou os choques que nesse mesmo dia tinham sofrido os colegas, pensou na situação actual de Brísida. O Rest.2 prometia a liberdade, mas tudo o que lhes dava eram mentiras, distracções falsas. Até Tugúbio convertera em veneno! E revelava-se agora capaz de…
— Tu não sabes isto, mas a tua avó deixou um documento escrito, fechado na secretária. Quando voltaste de férias, não viste sinais de gavetas arrombadas em tua casa?
— Sim… sim, vi, mas foi a polícia… Eles fazem sempre isso…
— Temos um contacto na polícia. Era uma declaração, assinada pelo pulso dela, a dizer que tinha sofrido ameaças. E indicava um nome preciso: Marcello Galvano.
— Não pode ser… não pode ser — repetia Carola, lívida. Recordava as atenções que Marcello lhe tinha dispensado durante o velório; mas também as palavras do irmão. — Quero ver essa carta.
— São eles que a têm. Nenhuma hipótese que ta mostrem. Não percebes? Eles protegem-se uns aos outros.
Carola sentiu-se maldisposta, o estômago revolvia-se-lhe. Ainda não recuperara do choque no Rest.2. Levantou-se, tentou dirigir-se para a porta da igreja, mas tropeçou nos próprios passos. Arrastou-se para um canto, de modo a poder vomitar longe do altar.
Ele aproximou-se, pôs-lhe a mão no ombro. E ela confessou, enojada:
— Estou farta… farta de tudo. Quero desaparecer, ir embora daqui com o meu irmão. Quero sair desta cidade.
— O que é que isso resolvia? — perguntou Virgílio. — O que é fazias tu lá fora?
— E o que posso fazer aqui…?
— Podes fazer muito mais do que imaginas… — Ele mediu a companheira. Era hora de revelar o que lhe ocultara durante meses. — Se tu quiseres, podes destruir o Rest.
*
Felizmente, Elda permanecera no Instituto. Marcello continuava em reunião no gabinete com os médicos da Bóreas, com certeza para discutirem o estado de Brísida, e o tutor pedira-lhe que revezasse Bartolomeu na vigilância de Tiago. Sozinho, o rapaz não estava em condições. Por duas vezes já tivera de sair da sala só para respirar, mas teimava em voltar. Elda convenceu-o a ir estender-se por dez minutos. Que fosse sossegado: ela ficaria sempre ao lado do colega, e avisá-lo-ia se houvesse alterações.
Passavam poucos minutos desde que se encontrava a sós com Tiago quando este pareceu querer voltar a si. Elda chamou o nome dele, baixinho, de forma branda mas insistente. E ele entreabriu os olhos.
— Estás bem? Tiago, estás bem?
Estava bem? Sentia-se quebrado, ainda com sono, mas lutou contra a fadiga. Reconheceu Elda, e veio-lhe um alívio por se lembrar dos colegas, antes mesmo de compreender de onde lhe surgia o receio. Mexeu a cabeça, os braços, as pernas.
— Parece que ainda estou inteiro.
— Que bom. Demoraste a acordar.
Tiago recordou então os derradeiros momentos da ligação de interacção. Alguma coisa ameaçara transformar-se, mas já terminara e… e estava tudo na mesma. Não se recordava de nenhum dado adicional da sua vida. O estado de amnésia não se alterara.
— Não funcionou? — perguntou Tiago. — A ligação?
— Não sei, houve uns problemas — confessou Elda, sem saber o que estava em jogo. Era inútil alarmá-lo, revelar-lhe a condição de Brísida. — Mas nada de grave. Acho que sim, que… funcionou.
Tiago teve um sorriso triste. Funcionara como Marcello planeara, Flávio estava a salvo. Precisamente quando ele activara o Curriculum, quando estava prestes a descobrir a sua verdade, Marcello interrompera-o, expulsara-o do Rest.2. E ali estava ele, naquela maca, fora do projecto, sem ter recuperado qualquer memória. Como a irmã vaticinara, como ele próprio temera. Amargurado, indagou:
— Onde está ele, o Marcello? Deixou-te aqui sozinha?
— Lá em cima, no gabinete. Uma reunião com gente da Bóreas. Pediu para eu avisar assim que acordasses. Vou lá.
Bartolomeu já fora para casa, concluiu Tiago.
— Espera. Ajuda-me a levantar. Vou contigo.
Ela hesitou, não lhe parecia sensato, mas Tiago já se erguia, apoiava-se na maca:
— Estou fino. Não vou falar com ele aqui, como um doente. Vá lá, ajuda-me.
E avançava, a cambalear, enquanto as mãos procuravam onde se agarrar. Elda ficou atrapalhada, como sempre os acontecimentos sobrepunham-se sem que ela tivesse tempo de tomar decisões.
O colega amparara-se nela, subia as escadas para o piso superior, degrau a degrau.
— Estás todo ofegante, Tiago — notou ela ao chegarem ao topo. — Não podes continuar, vou buscar-te uma cadeira.
— Leva-me para ali — e apontou para a sala de impulsão. — Preciso de me deitar. Depressa, que estou para desmaiar.
Elda ajudou-o como pôde, sentia-se uma imbecil por lhe ter obedecido. Claro que na sala de impulsão não havia camas. Ajudou-o a estender-se no módulo de ligação, trouxe-lhe um copo de água. Ele pareceu restabelecer forças, enquanto ela olhava para a porta, na esperança de ver surgir alguém. Mas Bartolomeu devia ter adormecido, estava tão cansado. E então Tiago deu-lhe instruções:
— Vai lá chamar o Marcello. Eu não saio do módulo, prometo.
Não tinha intenções nenhumas de o fazer. Talvez lhe restasse uma hipótese de se conseguir ligar e descobrir o que Marcello não lhe consentira. Sentia-se muito fraco, mas, se deixasse passar a oportunidade, nunca mais se apresentaria outra. Assim que viu Elda sair pela porta, puxou a tampa do módulo.
Ligou-se às pressas, sem os passos regulamentares. Ainda era possível, percebeu.
Com uma excitação incontrolável, reencontrou o túnel que avistara pouco antes de a ligação ser interrompida. E, também como então, ele não tinha propriamente um corpo, mas podia aproximar-se daquela luz por força da sua vontade. Ainda funcionava. Era uma escolha, um caminho que podia decidir tomar ou não. A cada passo dado naquela direcção — mas não havia passos —, a sensação inquietante de perder um pouco de si.
O impulso de voltar para trás tentava-o; mas o túnel prometia uma compreensão que se tornara vital para si. Tinham-se esforçado tanto por negar-lhe esse conhecimento, que já não podia abdicar dele. Tomara a decisão de avançar.
Então, num lapso infinitesimal de tempo, os momentos principais da sua vida passaram-lhe diante dos olhos. A chave da sua existência revelou-se-lhe por inteiro, e recordou-se de tudo. Tal como naquela crença, dissera ele uma vez a Brísida, de que isso acontecia no momento da morte.
5
Atrás de si, muito ao longe, uma luz qualquer testemunhava que a cidade ainda existia na escuridão. Ouviu-se um som tremendo, furioso, de rodas a embaterem em grades de ferro. Elda teve um pequeno sobressalto e olhou de soslaio para Marcello, que guiava apreensivo a seu lado. O tutor estava totalmente concentrado na condução, como se, de um momento para o outro, corresse o risco de perder o controlo do volante e a viatura pudesse saltar do tabuleiro para o vazio.
— Porque estamos a atravessar a ponte? — perguntou ela, com a voz fanhosa.
— É na Margem Sul — afirmou Marcello naquele tom seco, alheado.
— O quê? É na Margem Sul o quê?
Mas ele não respondeu. Elda sentia-se incapaz de reprimir as lágrimas. Não se lembrava da última vez que lhe acontecera chorar. A reacção do tutor era incompreensível, nenhuma viagem feita àquela hora podia alterar o que acontecera. Passava da meia-noite, o frio fazia-a tremer mesmo dentro do carro.
Temeu que ele tivesse enlouquecido. Porque a obrigara a acompanhá-lo, de forma tão repentina? Talvez a culpasse por ter abandonado Tiago naqueles segundos fatídicos, e se preparasse agora para lhe aplicar um castigo merecido: abandoná-la a ela, longe da cidade, para morrer. O que fariam nesse caso os seus pais? Os colegas não sentiriam decerto a sua falta. E quanto ao projecto, agora que Tiago… um novo soluço veio interpor-se aos seus pensamentos.
Tiago falecera. E a culpa era sua, que o deixara sozinho na sala de impulsão, estendido num módulo a que não se podia de modo nenhum ter ligado. Estava mortificada. Marcello bem os avisara de que, durante um tempo, tinham de se manter longe do Rest.2; como é que não pensara no perigo?
Podia rever a expressão de Bartolomeu ao entrar na sala, ainda estremunhado, mas em estado de alerta. Quanto a ela, ficara só ali, incapaz de agir perante o corpo inanimado do colega, como uma estúpida. Não como; ela era uma estúpida.
O tutor comandara a Bartolomeu que velasse o corpo do colega e, sem perder tempo, ordenara a Elda que o seguisse. Ela obtemperara, como em transe. Considerava agora que deixar Bartolomeu sozinho no Instituto, naquela situação, era desumano.
O carro já rodava na outra margem, por estradas que ela não podia conhecer, a alta velocidade. Marcello começara a falar:
— Elda, ouves com atenção. Lembras o que disse Flávio em Odeceixe? Que tu és fundamental no projecto?
Suspendeu as suas reflexões, aparvalhada. Não esquecera. Lembrou, como se tivessem sido pronunciadas naquele dia, as palavras exactas do fantasma: «o elemento mais importante do grupo».
— Não era mentira. És tu peça principal, Elda.
Elda fungou. Não era momento para brincadeiras. Perguntou, quase zangada:
— Para que é que me está a dizer isso agora?
— Porque estamos a chegar. Isto é Almada. Tens de preparar, o que vai viver daqui a pouco é… não consego mesmo explicar. Agora está tudo nas tuas mãos. Só tu pode fazer esto, percebes? És tu nosso trunfo.
Os faróis iluminavam as ruas da cidade deserta, enquanto se sucediam fachadas de casas em ruína, um ambiente tenebroso. Elda ignorou a palavra incompreensível.
— Só eu posso fazer o quê?
— De início vai achar que… — ia a dizer o tutor, mas Elda interrompeu-o.
— Responda a uma pergunta, Marcello. Só eu posso fazer o quê?
Marcello respirou fundo, parecia querer concentrar-se. Parou o carro e rodou a chave para desligar o motor: tinham chegado ao destino. Fixou a rapariga com atenção:
— Só tu pode viver tudo segunda vez. O projecto, desde o início. É por isso que fomos aqui. É o que tens de fazer. Sei que isto parece… maluquice total.
Era uma daquelas expressões incongruentes de Marcello. Por uma vez, vinha a propósito. Elda nem teve tempo de responder. Ele abriu a porta do veículo e saiu, deixando as luzes acesas.
— Vens, não temos muito tempo — instigou-a.
Ela obedeceu, atordoada. Estavam diante de um casarão, no centro da cidade abandonada. Era aquilo então Almada? Marcello pegou num molho de chaves e abriu o cadeado do portão. Enquanto isso, esclarecia, como se fosse essa a questão relevante:
— Esta é Palácio da Cerca. Lisboa fica ali, vês as luzes?
Já atravessavam o pátio, em direcção à porta de entrada do edifício.
— As instalações mais importantes da Bóreas é aqui, mas… ninguém sabe esto. Esperava que nunca precisava vir aqui com ti, mas…
As palavras nem tinham tempo para se tornarem reais na cabeça dela.
Tudo era tão rápido: entraram no palácio, avançaram por um corredor. Ele continuou a debitar incoerências até que se deteve diante de uma entrada, com ar circunspecto. Era ali, fosse o que fosse era ali. Fê-la ingressar no local às escuras, e ela ainda pensou em dar um passo atrás, mas já ouvira a porta fechar-se atrás de si. Quando Marcello ligou o interruptor, teve de proteger a vista. Não eram apenas os candeeiros, toda a sala faiscava. Os vidros, os aparelhos sofisticados, as próprias paredes eram feitas de luz. Demorou a compreender onde estava, mas não havia engano possível: a fileira de módulos ligava-se a uma esfera central, e Marcello já se apressava a ligar uma série de botões no painel de controlo. O local era como uma réplica da sala de impulsão.
— Não te preocupa — disse ele. — Teu módulo é aqui.
— Quer que eu me ligue ao Rest.2? Agora? — e, temerosa, Elda fez um movimento de recuo. — Marcello, não percebo… Está a fazer troça de mim?
— Esto não é Rest.2. É… — Marcello olhou para o chão, como se tivesse vergonha de dizer uma coisa infantil — … é outra coisa, como uma viagem no tempo. Hoje é quê, 4 de Dezembro? Vês, Tiago agora faz parte, é impulsor pleno: já não pode morrer. Tu vais ter de viver novo projecto, e… impedir que isso acontece.
O tutor era mais decidido do que ela. Fê-la estender-se no módulo, seguir os rituais de sempre. Desorientada, Elda continuava a fazer perguntas: era outro modelo do Rest?
— Não é Rest, juro — garantiu Marcello. Ajustado o módulo de Elda, levantou-se, dirigiu-se ao painel de controlo. Tinha os nervos em franja. — Já vai começar. Ouves, agora. O que vai viver não é virtual, é vida real. Voltas atrás, acordas no primeiro dia do projecto.
— Eu… viver tudo outra vez, estes seis meses? Mas isso é impossível! E os meus colegas?
— Vão estar lá também. Mas para eles é como se era a primeira vez, percebes? Não vão fazer ideia. Tu só… tu és a única a saber onde estás. E não pode dizer nada sobre isso, a ninguém. — Fosse o que fosse que ele estava a fazer, o processo já tinha começado. Marcello pediu: —E não te esquece! Tiago, tens de encontrar Tiago.
— Eu? Logo eu!? Mas… eu nunca vou conseguir… — queixou-se Elda, aflita. Sentia que as pálpebras se fechavam contra a sua vontade. Era um truque? Marcello ia deixá-la morrer como Tiago? — Não me faça isso… Eu não… não sou capaz…
— Certo que és capaz — disse o tutor, de modo suave, acocorado a seu lado. — És capaz, Elda, vais fazer tudo bem. Daqui pouco já vai acordar. E olha, não te surprendes se algumas coisas são diferentes.
— Dif… diferentes… como…? — perguntou ela, num sopro arrastado.
— Estás a ver, é que…
O tutor ainda acrescentou mais alguma coisa, mas ela já não podia ouvir as suas palavras com clareza.
EPÍLOGO
Recebeu uma cotovelada que a fez abrir os olhos. Carola, à sua direita, enviava-lhe sinais com as sobrancelhas. Elda estava estendida de bruços, como se tivesse adormecido por um segundo na carteira. Era aquilo Almada…?
— Elda, fiz-te uma pergunta — vincou uma voz irritada. — Põe-te direita, não são maneiras. E olha lá, Carola, não quero escutar nem um piu. Livra-te!
Elda endireitou as costas e encarou aquela mulher, que, à secretária, aguardava pela resposta. Havia pelo menos uns vinte rapazes e raparigas da sua idade, distribuídos pela sala. Estava desnorteada, ainda agora Marcello estava a falar com ela. Sabia que não era um sonho: quando era capaz de se fazer a pergunta, era porque estava desperta. Com ela, funcionava assim, via logo a diferença.
Sentado na carteira à sua frente, Bartolomeu tentou virar-se para trás, dizer-lhe alguma coisa, mas a mesma mulher deteve-o:
— Mau! Vira-te para a frente, Bartolomeu. Perguntei à Elda.
Aquela luminosidade difusa… Olhou para o lado esquerdo e viu uma janela aberta. Entrou em pânico: Fernão estava escarrapachado numa carteira, com os dois braços, o atrofiado e o são, expostos directamente ao sol! Refreou o impulso de gritar, mas deu um salto na cadeira. Entretanto, a mulher pressionava-a:
— Então, Elda? Estás tolinha? Quero um nome.
Não era o Rest.2, tinha a certeza, percebia de forma clara ao ver os raios de sol riscarem a sala e chegarem quase até si. Aquilo era a sério.
Atrás, alguém soprou um nome novo para si. Não precisou de se virar para reconhecer o sotaque de Brísida. Aquela mulher não a largava, tinha de arriscar a resposta.
— Cavaco Silva — repetiu Elda, com a convicção possível.
— Bem — concedeu a professora a contragosto. — Pensei que estivesses a dormir na sala de aula.
Olhou assustada para Carola, que lhe piscou o olho, com um sorriso rasgado, como se ela tivesse ultrapassado a primeira prova. Não soube o que dizer. Uma quantidade enorme de perguntas paralisava-a. Onde estava? O que acontecera ao projecto? E quem era Cavaco Silva?