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Elda
Bartolomeu
Carola
Fernão
Brísida
Tiago
Marcello

1

Brísida e Verónica no cabeleireiroBrísida tentava dispor na longa secretária de Marcello os dados complexos de uma equação. Havia semanas que se reunia com o tutor no gabinete, às horas a que os outros já tinham ido para casa, em busca de soluções para o problema de Tiago. De repente, já nada parecia fazer sentido.

— Mandar vir alguém de Copenhaga? Mas quem?

— Não sei. Em Portugal, não há virgines. Já não agora. Estamos no autuno.

«Virgens», «Outono».

— Um objector? — sugeriu a rapariga.

— Em 2017? São assim poucos… Tentei aceder à lista, mas…

Mas era um segredo do Conselho, claro, e o tutor não tinha moeda de troca. De resto, convinha manter aquela adversidade sob silêncio.

Tiago continuava a queixar-se de fraqueza, insónias, dores de cabeça; dias antes, Marcello acompanhara-o de novo ao médico, que receitara uns comprimidos inúteis. E os colegas começavam a mostrar-se inquietos. Ninguém podia imaginar que era a herança de Flávio a debilitá-lo, um sopro que carregava sempre com ele e que o consumia, na impossibilidade de se expandir no Rest.2. A única solução, assegurava Marcello, era transmigrar aquela entidade para um portador virgem, alguém que ainda não dispusesse de fantasma no mundo virtual. Se estivessem em Junho, não teriam dificuldades em encontrar um candidato, de entre a fornada de finalistas que recebia a atribuição, mas o ano ia avançado. Teria a Bóreas, na Dinamarca, um viveiro de virgens nórdicos à disposição?

— Tem de ser um rapaz? — perguntou Brísida.

— É mais decente. — Marcello sorriu, tentava aligeirar a conversa. Ainda ponderara extraviar uma das meninas do Abnego, mas o resultado seria o mesmo: contendas com o Conselho, e não tinha explicações para dar. — Brísida, mesmo tentei todo. Não podemos esperar, Tiago está de mais em mais fraco.

— Eu sei. É que… Chega esse Johan, ou Carl, e depois? Adeusinho, Tiago? Da noite para o dia? Acho que temos de o preparar, se é para deixar o projecto de vez.

O tutor demorou uns segundos a perceber que Johan e Carl eram só exemplos.

— Falta pouco, é depois das férias. Queres avisá-lo… Porquê riscar? Tenho medo do que pode fazer. E se volta a desaparecer?

— Ele nunca desapareceu, foi falar com a avó, aqui ao lado, à procura de respostas. É o que o preocupa mais, não saber nada sobre si mesmo. Estou convencida de que, se lhe dissermos que ao sair do projecto recupera a memória…

Marcello franziu a boca. Os tiques do tutor eram imediatos, Brísida aprendera com o tempo a interpretar as suas reacções. Ficou estarrecida:

— Não posso crer… Também não há garantia?

Mesmo depois de se livrar do fantasma, Tiago podia continuar amnésico.

— Não há — Marcello suspirou, derrotado — É cruel, mas que posso fazer?

Brísida reflectiu. Custava-lhe que traçassem nas costas de Tiago as várias linhas, todas falhadas, do seu futuro. Indicou, a medo:

— Olhe lá… E se o Marcello tentasse outra vez o Curriculum?

— Não, não, não! Isso nunca! — E Marcello levantou-se da cadeira, bruscamente. — Já disse. Curriculum só pode fazer pior. Viste as consequências da outra vez. E nem toquei num Curriculum personal.

— Por isso mesmo! Se se limitasse ao dele…

— Brísida, tu não percebe. Tiago agora tem de ser tratado como peça frágil, de valor… Um Stradivarius! Não podemos correr risco.

Aquele comentário indispôs Brísida. Quanto desvelo!... Sabia muito bem que, para Marcello, o Stradivarius era o fantasma de Flávio Hirpo. Ripostou, com malícia:

— O rapaz também não está nas últimas. Dores de cabeça curam-se com aspirina.

Marcello olhou para a impulsora com ar hesitante. Dizer, não dizer? Sentia-se exausto, tentar equilibrar os segredos era por vezes impossível. Em relação a Tiago, apenas Brísida estava a par da situação, e precisava de garantir aquela aliada. Dizer.

— Brísida, situação é grave. Não assusta, mas melhor que tu sabes. Se fantasma de Flávio não sai do corpo dele… Tiago pode morrer.

 

*

 

— Como assim, «achas que não dá»? — indignou-se Úrsula, ao telefone. — Estávamos a contar contigo nas férias. Queres mesmo dar este desgosto ao teu pai?

Brísida levantou os olhos ao céu. Às vezes, era preciso paciência.

— Porquê «ao pai»? E tu, não ficas desgostosa?

Além de que o pai ela ainda encontrara algumas vezes no Rest.1, antes de se ver obrigada a quebrar a adesão. Mas dessas reuniões a mãe não estava ao corrente: com ela, havia que seleccionar a informação.

— Sabes bem que não é a mesma coisa. Havias de ver como anda murcho. Só a perspectiva da tua chegada é que o anima. Penso que a tua irmã viveu bem estes anos sem a tua companhia, não é? Foi a escolha dela.

— Sim, mãe, mas as coisas não são a preto e branco. E agora…

— Filha, sou eu quem te peço — cortou Úrsula. Último recurso: — Este ano faz trinta anos que morreu a tua avó, queria juntar toda a gente.

Exacto, trinta anos: eu nunca conheci a avó Miriam, pensou Brísida. Mas disse:

— Eu percebo que é importante para ti.

— Não! É importante para nós. É a memória da família, Brísida. A avó Miriam, eu, tu: é a linha da vida.

Com ela, era mais uma linha que se fechava, mas isso não era coisa que pudesse lembrar à mãe. Brísida prometeu pensar no assunto, embora, no seu íntimo, considerasse a discussão sem sentido. Os mortos não podiam ter precedência sobre os vivos. Como Flávio Hirpo não podia ser mais importante do que Tiago.

Ao fim da tarde, combinara encontrar-se com Verónica num auto-intitulado salão de beleza, na zona do Saldanha. Com aqueles pensamentos intricados na cabeça, mostrava ainda menos paciência para os habituais caprichos da irmã. Teve de se insurgir:

— Não, não, não! Isso nunca. Já disse!

— Olha, faz como quiseres. Mas fica sabendo que é o corte que está na moda. És tão convencional! — lamentou-se Verónica, num tom de resignação. Retirou do regaço da irmã as fotografias que serviam de exemplo, e lançou um olhar desesperado à cabeleireira. Brísida nunca estava disposta a mudar o que quer que fosse.

— Um minuto, volto já. — A senhora afastou-se, talvez receosa de assistir a uma disputa entre irmãs.

— Até! Se te custava alguma coisa experimentar… — queixou-se Verónica, entre dentes.

Brísida nem se dignou responder. Não suportava quando a irmã se punha com manias. Claro que, se tinha a possibilidade de usufruir do serviço daqueles, isso se devia aos rendimentos de Verónica, mas não era motivo para se sacrificar. Não digo nem mais uma palavra até sairmos daqui, pensou. Perdeu a coragem, contudo, ao ver reflectida no espelho a grossa barriga de Verónica. Entrava no sétimo mês de gravidez e ali estava, em pé, cheia de energia para disputas pueris. Brísida acabou por pedir:

— Vá lá, não amues. Quando a enfermeira Neuza for lá para casa, podes experimentar com ela os penteados que quiseres.

O gracejo fez rir a irmã. Perante a sua firme intenção de se manter no apartamento, a enfermeira instalar-se-ia aí com elas até ao nascimento do bebé. Chegaria no domingo. Verónica condescendeu:

— Ainda me ajudou, quando estive internada. Lá coscuvilheira é, mas, como direi?, uma alma cândida. Só não sei como é que tu a vais aguentar nos próximos meses com esse mau génio…

O tom voltara a ser ameno. Era sabido, a mínima altercação entre elas podia dissipar-se em segundos. Brísida sorriu, contou à irmã:

— A mãe voltou a insistir para eu ir ao Porto nas férias.

— Então… e vais! Com a enfermeira lá em casa, não há necessidade nenhuma de ficares cá. Quando é que voltas a ter uns dias de férias?

— Eu sei… mas não queria deixar-te sozinha com ela.

— Passei por várias gravidezes, Brísida. Isto diz-se, «gravidezes»? Soa tão mal… Seja como for: várias! Não há problema nenhum. E os pais querem ver-te, de certeza…

— Está bem, vou então. Sempre são férias para ti também.

 

2

De manhã, ao chegar ao Instituto, Brísida encontrou Bartolomeu no tapete móvel. Ficou à espera de um comentário em relação ao corte de cabelo, mas de facto devia ser pouco ousado, porque ele nem reparou. Pelo contrário, o cachecol azul e branco que o rapaz trazia à volta do pescoço não passou despercebido aos olhos dela.

— Que bonito… É novo?

— Obrigado, ehhh… Não, nem sequer é meu.

— Do Marcello? Não faz nada o género dele…

— Não, é… é do Tiago. Quer dizer, emprestou-me. Há uns dias. A tua irmã? Sempre a deixam ficar lá em casa?

Brísida confirmou. Falou-lhe da enfermeira Neuza, Bartolomeu forçou um sorriso. Depois, pô-la ele a par das últimas idiossincrasias de Marcello reveladas no convívio doméstico, e ela a fingir que se divertia.

Mas houve um momento em que os subterfúgios se esgotaram, e aguardaram o elevador em silêncio, embaraçados. Desde que Bartolomeu abandonara o apartamento dela naquela manhã de domingo, nem uma única vez tinham aludido à noite passada juntos. Dois meses tinham passado. Bartolomeu balbuciou qualquer coisa a propósito do botão em que carregava, como se a escolha do piso exigisse reflexão. Mais uma vez, a sensação de descida dava cócegas na barriga.

— E nas férias? — perguntou ele, aliviado por se ter lembrado de outro tópico.

— Afinal, vou mesmo para o Porto. Já combinei com os meus pais.

Era de bom tom devolver a pergunta, mas claro que ele não ia para lado nenhum. Ou se calhar, sim, iria a Faro ter com a tal noiva. A verdade é que ela não queria saber.

Quando entraram na sala de impulsão, Tiago já lá estava: o rosto marcado pelas olheiras, mas um ar beato, parecia santo.

— Não tinhas de me dar já — disse o rapaz enquanto Bartolomeu lhe passava o cachecol. E explicou a Brísida: — Viste o gelo que se pôs ontem à noite?

Mas ela nem estava a ouvir com atenção. Tiago anunciava um plano qualquer para as férias: a avó enviara-lhe pelo correio um convite para um daqueles apartamentos reservados a estrangeiros: cozinha de luxo, jacuzzi, hologramas. Cortesia do Conselho, embora a carta viesse por assinar.

— «O último refúgio de Lisboa» — leu o rapaz com ar dubitativo. — Quem sabe… Não queres vir connosco? Pode ser giro.

Brísida não via o que havia de tão giro em ficar fechado entre quatro paredes.

— Pois, mas não dá, vou a casa nesses dias. É mais modesto, mas também vou ter cozinha de luxo…

Disse aquilo por simpatia, mas não lhe apetecia estar com conversas. Ir a casa era bom, mas implicava sempre uma adaptação a regras de que se afastara. E, sobretudo, os pais não sabiam nada da ameaça de repulsa. Não era a primeira vez que escondia deles um segredo, mas nada de assim tão grave. E reviu-se no terrível ataque que o seu duplo da ligação de interacção precedente experimentara: de um minuto para o outro a vida toda podia mudar.

— …para te perguntar — concluiu Tiago, com uma expressão cautelosa. Dirigira-se a ela, e esperava resposta.

— Desculpa, o quê?

— Se dá para falarmos — repetiu o colega. — Não ouviste o que te disse?

— Claro. Porque é que não passas lá por casa? Esta noite, pode ser?

Ele olhou para o lado, como que a confirmar junto de Bartolomeu.

— Não percebo. Vocês tinham planos?

— Sim, não, claro que dá — apressou-se a responder Tiago. — Se para ti não é incómodo. Passo depois do jantar.

 

*

 

Brísida deu um jeito às almofadas para que o hóspede ficasse mais cómodo. Tiago tirou os sapatos, cruzou as pernas no sofá. Verónica descansava no quarto ao lado.

— De certeza que não incomodo a tua irmã…? — perguntou o rapaz.

— Não te preocupes. Diz lá, queres saber em que pé estamos, não é?

— É que o Marcello vem com aquela conversa, mas parece que fica tudo na mesma. Há semanas que não durmo uma noite inteira. Francamente, já não confio nele. Agora, no que tu me disseres…

Ela não lhe podia mentir, sugeria Tiago, porque faziam parte do mesmo grupo. O que se chama uma situação delicada. Brísida esforçou-se por ser o mais afirmativa possível:

— Olha, Tiago, anima-te: vai acontecer já depois das férias.

— OK. Vai acontecer o quê?

Era imbecil tentar levá-lo com as mesmas fórmulas vagas de Marcello. Tiago fora à sua casa em busca de dados concretos: ou ela se decidia a partilhar informações, ou mais valia dizer-lhe que se fosse embora.

— O fantasma do Flávio vai ser transmigrado para outro portador, o Marcello diz que a Bóreas lhe arranja alguém. Ficas livre desse parasita, que é o que te está a pôr doente.

— Outro portador… Então é para eu sair do Rest.2? Do projecto?

Já devia estar à espera daquele desfecho, Marcello deixara logo claro que ele não «funcionara» como portador. Ainda assim, o olhar de Tiago foi morrendo. Afundado no sofá, desprotegido, era quase como se lhe faltasse uma manta. Brísida puxou as pernas para junto das dele, um contacto que não arriscaria facilmente com outro rapaz, mas que, com ele, não traduzia nenhuma ambiguidade.

— Achava que o projecto não tinha importância para ti…

— Dantes não tinha. Mas agora… mudou.

— Nós também só vamos ficar mais alguns meses — lembrou ela, sem saber bem como interpretar as palavras dele. — Não faz assim tanta diferença, ou faz? E depois, sabes lá que atribuição te…

— A memória volta de modo automático? Quando transmigrarem o fantasma?

— Acho que não te devias preocupar com isso. Se o Marcello diz…

— É que estive a pensar. Talvez se ele mexesse no tal Curriculum…

— Não, Tiago, nem vale a pena pensares nisso. Ele não volta a mexer… naquilo.

Ele irritou-se. Todos pegavam na palavra com pinças.

— Não achas que ao menos está na altura de me explicares o que é?

— Tens razão.

E Brísida contou que a origem do Curriculum recuava à concepção do Rest, nos anos 70. O mundo virtual formara-se a partir das recordações de quem tinha sobrevivido à catástrofe. A fonte comum, chamava-se então a essa soma.

— Logo nessa altura se percebeu que com o Rest se conseguia aceder a uma quantidade abissal de experiências passadas de cada pessoa — explicou a rapariga. — Tudo o que está algures no teu cérebro, mas de que não te lembras: o Rest chega aí. Ora, cada ser humano só se lembra de uma ínfima parte do que viveu. Recordas-te do que fizeste hoje, menos bem do que aconteceu ontem, muito menos se recuares duas ou três semanas. É assim. Tendemos a esquecer, e é mesmo necessário.

— Necessário?

— Claro. Se nos lembrássemos nitidamente de cada momento vivido, o raciocínio era impossível. Não poderíamos pensar, distinguir ou fazer escolhas.

— Sim, estou a perceber. Demasiada informação.

No início, continuou Brísida, o Rest resgatava todas as memórias, sem levar em conta a parte do esquecimento. A história de vida que os utilizadores tinham construído ao longo de uma existência desabava com uma simples ligação. Levavam com uma avalanche de passado que os fazia reequacionar tudo. Muitas pessoas não ultrapassavam a experiência: enlouqueciam com o que descobriam, suicidavam-se.

Com o tempo, porém, tornara-se possível controlar esse aspecto. O Rest conseguia agora respeitar os filtros privados. As lembranças soterradas de cada um tinham passado a ser canalizadas para o Curriculum.

— O Curriculum é… bem, é como um apanhado de momentos fundamentais, das experiências que mais contaram para uma pessoa. Incluindo o que está esquecido, ou é ignorado. Não é só coisas de que te lembras, são as impressões que nascem a partir daí, que dão um sentido novo ao que viveste. De certa forma, é um resumo que te faz compreender quem tu és.

— Como aquilo que se diz… Aquela crença de que, quando uma pessoa morre, vê desfilar os momentos essenciais da sua vida, num milésimo de segundo?

— Lá está, é uma espécie de chave da existência. Só que aceder ao Curriculum pode ser muito arriscado. E, no passado, houve experiências para confundir memórias, alterar o passado… Imagina as consequências! Hoje em dia isso é tudo proibido. Sem passar pela Bóreas, é impossível chegar ao Curriculum de alguém…

Brísida deixou a frase em suspenso. Tiago completou, com lógica:

— … no Rest.1. Mas não é assim no Rest.2. O Marcello mexeu no nosso Curriculum para aquela ligação de interacção.

— E viste o resultado. Esquece, Tiago, ele não quer voltar a usar…

— Mas tu, se quisesses, conseguias chegar ao meu Curriculum? Sem ele saber?

— Teoricamente, sim. No Rest.2, estamos todos ligados, bastava partir do meu próprio Curriculum. — Brísida assustou-se com aquelas palavras. — Mas é claro que não vou fazer isso.

 

*

 

Passou o resto do serão inquieta, e via-se. Foi-lhe difícil convencer Verónica de que a visita do colega não a perturbara.

O domingo custou-lhe a passar, tanto mais que Neuza Melo apareceu de manhã cedo, apanhou-a ainda em pijama. É certo que o apartamento das irmãs não era muito espaçoso, mas naquele dia pareceu-lhe terrivelmente acanhado. A enfermeira falava mais do que o tolerável, intrometia-se em todas as questões domésticas, e ainda insistiu em preparar o almoço, uma teima que se veio a revelar desastrosa. A meio da tarde, quando Verónica foi repousar, Brísida sentiu que tinha de sair de casa. Vagueou por ruas internas, enervada com a situação e consigo mesma, até dar com as muralhas a norte. Uma discreta tabuleta indicava o Museu da Cidade, e ela entrou no edifício vetusto sem intenção precisa. Com um peso no coração, circulou por salas vazias, onde a memória se perdia: as molduras tinham sujidade incrustada, a maquete de Lisboa antiga ganhara uma racha. Depois, o letreiro do aeroporto anunciava uma secção reservada a símbolos de época mais recente; Brísida esquivou a câmara dos estúdios de televisão e foi pegar nuns óculos escuros, objecto por excelência de tempos volvidos. Usou de toda a delicadeza, mas uma haste partiu-se-lhe nas mãos. Transtornada, girou a cabeça, à procura de uma testemunha, ou de alguém a quem comunicar o acidente. Não estava ali ninguém.

Na segunda de manhã, evitou conversas com Marcello. Evitou conversas com toda a gente. Queria ligar-se, apenas.

Só o do Tiago, decidira, no dos outros não toco.

Elda, Fernão, Carola, Bartolomeu: que segredos não descobriria se penetrasse naqueles quartos escuros. Felizmente, tivera o domingo para reflectir, estabelecer um plano sensato. A ideia insinuara-se-lhe como um crime fácil: aceder ao Curriculum de Tiago. As circunstâncias legitimavam-no, e ninguém precisava de saber, aliás, nem mesmo ele. A acção não modificaria em nada o curso da história. E, se Tiago se visse afastado do Rest.2 sem ter conseguido recuperar a memória, ela poderia pelo menos garantir-lhe um punhado de dados concretos. Era um bem que lhe fazia.

Receava, sim, algumas consequências. Nada sabia sobre o passado do colega, podia não estar preparada para as revelações. Nesses momentos, porém, a imagem inocente do rapaz com os pés em cima do sofá vinha apaziguá-la, sobrepor-se à razão.

Faltava uma semana para as férias: ia passar o tempo naquilo, claro. A operação era demorada, exigia perícia, persistência. Horas seguidas a desfiar códigos para tentar forjar uma porta de acesso ao Curriculum dele, e um passo em falso comprometia os resultados de um dia inteiro de trabalho. De cada vez, tinha de contornar o seu próprio Curriculum, como uma pedra no caminho que dava vontade de apanhar.

Ao reemergir do módulo, sentia-se zonza, indisposta, incapaz de atentar no que diziam os colegas. Mas era impossível abrandar. Quando se embrenhava numa investigação, adoptava sempre comportamentos obsessivos, e a ideia de não conseguir chegar a um resultado antes de partir para o Porto tornara-se-lhe insuportável.

Era sexta-feira quando, diante da tela de comandos virtual, inscrevia o último algoritmo necessário. Aflorava mais uma vez o próprio Curriculum, uma seta que apontava para dentro de si. Sentir que tinha os momentos incendiários de uma vida ao alcance dos dedos dava-lhe uma sensação de poder inebriante. O que não aprenderia ao cruzar aquela fronteira — e nada a impedia. Era uma pessoa racional, capaz de lidar com qualquer descoberta. A escolha limitava-se agora a um sim ou a um não, e o bater do seu coração era um som afirmativo.

— Mas tens a certeza de que é isso que queres, minha pequena?

Era o professor Simões, o respeitado mestre. Abstivera-se de convocar a projecção durante toda a semana, mesmo nos momentos de maior dificuldade, e ei-lo que aparecia sem encontro marcado, na hora decisiva. Brísida não tirou os olhos da tela, respondeu em pensamento, apenas para si mesma.

Estou a fazer isto para ajudar o Tiago.

— Não tens esse direito. Não lhe pediste autorização.

Não posso. Ele ia querer ver… E se descobrisse coisas que não é capaz de aguentar?

— Quem és tu para decidir? Achas que estás acima da lei?

Não há lei para isto. Faço eu a lei.

— Brísida, Brísida, não aprendeste nada este ano?

Brísida assustou-se, já não era o professor; a projecção desaparecera. Fora a sua própria voz que ouvira.

 

3

Ao chegar a casa, Brísida fechou a porta com delicadeza, sem bater — um gesto que a enfermeira descurava sempre. Recolhida no cubículo que lhe coubera como aposento, Neuza engrolava o terço, como fazia habitualmente.

— A minha irmã?

— Na vizinha. Que precisava de mudar de ares.

Brísida sorriu. Imaginava: o dia inteiro a ouvir aquela ladainha…

— A menina anda com cara de caso — lançou a enfermeira, assim que terminou as rezas, enquanto se aproximava com passos pesados da mesa onde ela se sentara.

— Muito trabalho — respondeu Brísida.

— Trabalho! — Neuza arrastou a cadeira para se sentar. — Ligar-se ao Resto…

Era uma corruptela bastante usual, aquela do «Resto». Apesar de tudo, aquelas sentenças já a tinham arreliado mais do que agora. Ao fim de dois ou três dias, era como se a enfermeira fizesse parte da mobília. Uma pessoa habituava-se a tudo.

— A dona Neuza também gosta de se ligar, eu já percebi.

— Sempre se passa um bom bocado, não é? Desta vida levam-se tão poucas alegrias… É uma forma de lavar a alma.

Brísida trocou com a companheira um sorriso encorajador, e ela continuou:

— A menina já veio ao mundo noutra era… Não passou pelos tempos mais duros, graças a Deus.

— E a senhora já era nascida… quando aconteceu…? — Era uma pergunta inútil. A enfermeira andava pelos cinquenta, bastava fazer as contas.

— Oh, filha, claro que sim. Tinha eu doze anos. Foram tempos que… nem é bom lembrar. Nós aqui em Portugal não sofremos logo, quer dizer… Não percebíamos bem as consequências. Mas, ainda assim, nos anos seguintes a peste levou tudo à frente. Primeiro os bichos todos. Eu tinha um cachorrito, o meu Piloto… foi-se de um momento para o outro. Depois, homens, mulheres, crianças… Caíam como tordos, uma desgraça. A epidemia ainda lavrou uns anos valentes. O meu pai… finou-se três anos mais tarde.

Brísida sentiu-se desconfortável. Numa espécie de acordo tácito, os sobreviventes poupavam às novas gerações relatos crus dos acontecimentos passados. Claro que a realidade estava à vista de todos. Conheciam factos e estatísticas aprendidos na escola: datas de bombas, a difusão da epidemia, o avanço da esterilidade. Mas ninguém falava disso abertamente, como se sempre se tivesse vivido nas condições actuais. Não sabia agora o que dizer perante aquela confissão inesperada.

— Então a dona Neuza… ainda se lembra de viver lá fora… ao sol?

— Lembro pois, quando era garota. Mas soube-se logo que era perigoso. Janelas tapadas, de dia em casa, só se saía à noite. E nós também fazíamos muita vida de mar, a minha família era de Peniche. Tinha uns tios pescadores, que ficaram meio entrevados com aquela história da enzima… Mas, olhe, não a quero maçar com esta conversa.

— Não maça, não maça.

— Não são assuntos para moças de hoje. A menina tem o Resto, pode fazer uma ideia de como era o mundo antes. Que não é a mesma coisa, lá isso… Não me levam nessa conversa. Eu bem sei, bem me lembro. E olhe que eu também contribuí para as máquinas.

— Para a fonte comum? Com a sua memória?

— Pois, era já rapariga feita. Pus-me na fila, como toda a gente. Por vocês, percebe? Para salvar aquilo de que a gente se lembrava. Mas quem estava atrás das máquinas também procedeu mal, lá isso… Não os perdoo. Procederam muito mal.

— Procederam mal? Como assim…?

— Com os velhos. Se calhar, não sabiam. Mas foi uma razia. Alguns logo de imediato, morte súbita na primeira ligação à máquina. Outros degeneraram. Eu bem no disse, à minha mãezinha, que não fosse. Já tinha uma idade. Que dissesse que era objectora, ou lá como se chama. Pois tantos diziam, não é? Mas ela teimava. Que o fazia pelos meus filhos, para quando eu os tivesse. Coitadinha, acreditava tanto nisso, nos netinhos que havia de ter. Lá me ficou, também ela…

Neuza limpou uma lágrima com o lenço de pano herdado da mãe.

— Sou só eu, hoje — concluiu. — Perdi-os a todos. É por isso que gosto de me ligar ao Resto, sempre os encontro lá. Não é a mesma coisa, já lho disse, e não me desminto. Aquilo não é o mundo como costumava ser. Melhor do que este, lá isso é. Mas não vou para lá à procura de um mundo menos mau. A menina Brísida isso não pode compreender, mas se a gente se liga é porque… ali sempre se fazem viver os mortos.

 

*

 

— Estás bem? — a voz de Elda ressoava na casa de banho.

Brísida fez que sim, mas manteve a cabeça baixa.

— Não é nada, já vai passar. Uma quebra de tensão — acabou por responder, irritada, ao deparar no espelho com aquela cara pregada no reflexo dela. Sabia que exagerara com os esforços no Rest.2 naqueles dias.

— T… tens a certeza? Se quiseres, eu…

Aproximara-se, de fininho, e já lhe tocava no braço. Brísida teve de refrear o impulso de a sacudir. Aquela Elda não se podia, era simplesmente incapaz de medir as ocasiões. Se pensava que se iam tornar amigas agora que Carola a tinha escorraçado, estava bem enganada.

— Deixa, já te disse que não é nada — repetiu com rigidez.

Passou uma mão-cheia de água fria pelo rosto, para retomar vivacidade. A outra, calada, ficou a olhar de lado, talvez com medo que lhe desse qualquer coisa. Enfim, pelo menos, se caísse redonda no chão, não ficava desamparada. Brísida respirou fundo, perguntou por perguntar:

— Vais a Coimbra para a semana? Nas férias?

— Eu? Não, fico em Lisboa. Os meus pais… eles trabalham.

— Claro, nem pensei nisso. Também vais para aquele apartamento do Tiago?

— Não, isso… estás a ver, eu… não vai dar — e Elda baixou os olhos.

Significava que Carola ia, concluiu Brísida. Teve um momento de pena, que espantou depressa. Enxugou o rosto e abandonou o recinto.

Na sala de impulsão, Fernão, encavalitado no módulo, fez-lhe um leve aceno que não significava nada. Carola estava sentada à mesa, a escrever alguma coisa num bloco. Indiferença total. Nada de novo, mesmo se lhe parecia que a proximidade das férias devia impor entre eles um mínimo de cordialidade. Encostou-se a uma parede, depois viu Elda regressar e eclipsar-se a um canto. Os minutos passaram sem que ninguém rompesse o silêncio, e teve a nítida impressão de que se poderiam manter assim durante horas. Até que um som de risos ecoou nos corredores, e Bartolomeu e Tiago entraram pela porta.

A semana chegava ao fim. Na véspera, mesmo no último momento, Brísida optara por desistir do plano de aceder ao Curriculum de Tiago. As suas motivações não eram límpidas. O que a atiçava, na verdade, era a ideia de mergulhar numa verdade maior do que a consciência. Não podia violar a privacidade do colega.

Deixou os outros e dirigiu-se em passos lentos ao acesso do Instituto. Marcello já não devia tardar. E, de facto, ali vinha ele, com o ar desorientado que não conseguia disfarçar. Era dia de ligação de interacção.

— Brísida. Sim, estou um pouco atrasado. Não há novidades, não?

— Acho que percebi — disse Brísida, como se as palavras do tutor fossem irrelevantes. — Acho que já percebi para que serve o projecto.

Marcello estacou a marcha, olhou para a impulsora com assombro.

— Para que serve…? O projecto, eu expliquei…

— Para testar o novo modelo, pois… Mas é impossível comercializar o Rest.2 a breve prazo, sabe isso tão bem como eu. As falhas de segurança são enormes. Eu mesma, se quisesse… Não sou estúpida, Marcello. Não é para isso que serve o projecto.

— Estás errada. É vero que precisamos mais tempo que…

— Eu sei que o Flávio Hirpo era seu sobrinho — cortou Brísida. Era assertiva, mas falava calmamente. — E lamento que ele tenha morrido.

O tutor balbuciou alguns sons roucos, mas não foi capaz de articular uma resposta. Manteve-se parado, com o olhar aterrado, como se tivesse levado um choque.

Brísida apiedou-se dele, mas sentiu um gosto de vitória. Podiam riscar documentos, sonegar informações. Ela já chegara mais longe do que alguma vez podia supor.

— O Flávio morreu, mas de algum modo o fantasma dele conseguiu sobreviver no mundo virtual — continuou ela, impassível. — Tantos meses com perguntas e a resposta à nossa frente! O objectivo do projecto é claro: o Rest.2 permite aos mortos continuarem a viver.

 

4

Brísida sozinha na cave escuraRest.2. A divisão em que se encontrava estava imersa na penumbra, mas, graças a uma fresta de luz, Brísida conseguiu identificar as formas de uns quantos móveis. A pele colara-se à estofa da velha poltrona de braços, onde se formara uma camada de pó e de moscas mortas. Ao despegar o cotovelo, ouviu-se um som repugnante.

 — És tu, não és? Brísida?

Ela levantou-se, avançou na direcção da voz. Um ruído estranho, vindo do exterior, causava uma vibração naquele piso húmido, de tecto baixo. Fernão estava encostado a uma salamandra enferrujada, uma tira de luz batia-lhe em cheio no rosto.

— Acho que há ali uma porta — disse ela, como a lançar uma sugestão. Olhou para os lados, a habituar a vista, e gritou, sem muita convicção: — … aqui alguém?

Nada. O soalho rangia, à medida que Fernão se deslocava. Resmas de jornais espalhavam-se pelo chão pejado de rolos de cotão, indiciando um estado de abandono que as manchas de bolor na parede tornavam mais evidente. Brísida respirou com nojo o ar bafiento, contaminado.

— Inútil — Fernão estalou a língua. — Pregaram tábuas por fora da porta.

— Tem de haver uma saída — replicou ela. De novo, aquele barulho retumbante, como um tremor distante. — Estás a ouvir isto?

Fernão não respondeu, passou por ela sem lhe ligar importância, a tactear as paredes, talvez à procura de um interruptor. Brísida ia perdê-lo de vista. Encolheu os ombros, e avançou na direcção contrária. Percorreu de boca tapada, para contrariar o enjoo que lhe dava o cheiro a mofo, uma fileira de quartinhos esconsos e enegrecidos, e em nenhum encontrou mais do que peças rudimentares de mobiliário, camas de ferro, candeeiros sem lâmpadas. Mas a última divisão tinha pregada junto à porta de entrada uma moldura de latão com um retrato a preto e branco.

Por um momento, deixou-se confundir: ela mesma, podia lá ser? Mas a fotografia trazia a data de 1957 apontada a carvão. Uma rapariga parecida, de bandós. E então reconheceu a expressão de outras fotos. Era a avó Miriam, quando jovem. Bonitos os olhos grandes, em que transparecia uma têmpera suave. À data, já estaria casada com o avô Firmino?

Brísida não chegara a conhecer nenhum deles. A mãe Úrsula contara-lhe o percurso atípico daquele casal angolano, deslocado para a metrópole nas vésperas da guerra colonial, a serviço de uma rica família burguesa que, por razões imprecisas, decidira instalar-se em Espinho. Os empregados viviam na cave e trabalhavam do nascer ao pôr do sol. Um dia, depois de muitas tentativas frustradas, ao ponto de já não julgar isso possível, Miriam descobrira-se de esperanças. Desgostosa pela morte da própria primogénita, a patroa resolvera patrocinar a gravidez, escolhera ela o nome de Úrsula. Miriam deveria conservar o estatuto de mãe do quarto dos fundos, mas, impreparada para os novos tempos, viria a falecer prematuramente. Era tudo o que Brísida sabia.

Um novo abalo trouxe-a de volta à realidade. A moldura estremecera como sob o efeito de um sismo. Brísida assustou-se, mas, pelo menos, viera-lhe uma certeza: aquela era a casa de Espinho.

Foi sentar-se na cama, a olhar para o retrato. Se o seu palpite estava certo — o mais provável era que Marcello nunca o viesse a confirmar —, e o Rest.2 permitisse de facto preservar acesa a consciência de cada ser humano, mesmo após a sua morte física, as consequências seriam inestimáveis. O mundo virtual seria um vasto universo de testemunhos, de uma riqueza incalculável, mas a perspectiva assustava-a. O ruído seria ensurdecedor. Lembrou a conversa que tivera com Tiago, dias antes, sobre a necessidade do esquecimento. Poderia ela viver a sua vida se estivesse exposta em permanência às memórias dos seus mais remotos antepassados? E que fazer de uma vida eterna?

A garganta contraiu-se devido à poeira dispersa no ambiente. Aquele sítio dava-lhe arrepios. Sentou-se no colchão de palha, olhou para o candeeiro verde que pendia do estuque, para as quatro paredes onde o papel descolara. Num dos cantos, formara-se um buraco do tamanho de um ninho. E então, de repente, daí surgiu uma grossa aranha preta, como um punho cerrado: cem patas rápidas que já avançavam na sua direcção. Brísida fechou os olhos depressa. Em pânico, gritou por Fernão.

O rapaz, no entanto, encontrava-se naquele momento no cima das escadas. Tentava forçar uma porta, que oscilava a cada novo tremor, sem, contudo, ceder ao impacto do seu corpo.

— Acho que os outros estão aqui em cima — justificou-se, quando se apercebeu de que Brísida o observava do fundo dos degraus. — Mas esta porcaria está trancada.

A outra não se moveu, devia achar que ele tinha peste.

Fernão ainda insistiu, mas era inútil. Não tinha força para deitar a porta abaixo. Talvez se encontrasse por ali um martelo, um alicate, qualquer coisa. Voltou a descer os degraus, enfastiado com a postura inerte de Brísida, que nem se arredava para ele passar.

— Não viste por aí nada com que se possa partir o trinco?

Abriu gavetas, espreitou atrás dos móveis. Só lhe apareciam coisas imprestáveis, panos do pó, maçanetas partidas, novelos de lã. Outro tremor abafado. Pelo menos, achara uma caixa de fósforos. Brísida continuava especada no degrau.

— Já me estás a irritar — avisou, com um olhar ameaçador.

Foi quando reparou naqueles preparos: pouco antes, Brísida não estava vestida de preto, e porque atara o cabelo naqueles bandós? Riscou um fósforo.

E então aqueles grandes olhos suaves revelaram outra história. Não era Brísida. Fernão deu um grito, deixou cair o fósforo, que apressou a apagar, com medo de um incêndio. Ao levantar a cabeça, a morta desaparecera.

 

*

 

O zurro prolongava-se, estridente, enchia o quintal.

— Que impressão — e Tiago tapava os ouvidos.

— É mesmo assim — assegurava Carola, mas torcia as mãos nervosas. — É o som que eles fazem, não quer dizer nada.

O colega bem tentou convencer-se. Não disse uma palavra. Imaginou o burro doente, em agonia, preso a uma corda num dos quintais contíguos. O muro de tijolo não permitia verificar. Ela insistiu:

— Porque é que havia de ser diferente? Não há problema nenhum, Tiago.

Ele fez um movimento com o queixo, a mostrar os limoeiros despidos, as flores queimadas, o grande castanheiro encarquilhado. Já não havia jardim.

— Estamos no fim do Verão — justificou Carola. — O sol queimou tudo.

— Exacto — e Tiago tentou engolir a palavra, mas era tarde demais. Tentou arrancar as tábuas da porta inacessível, de novo. Em vão.

— Estás a delirar. Olha ali, uma espreguiçadeira! Achas que se já não desse para estar ao sol… Não há perigo. Estamos no Rest.2, pá.

— Não estou a dizer… Claro que para nós não há perigo. Acho. Mas as portadas das janelas todas fechadas, olha, também as dos vizinhos.

— Os vizinhos saíram, sei lá. Se calhar foram passar o fim-de-semana fora.

— Com este tempo?

O céu estava carregado, cor de mercúrio, como o negativo de uma fotografia. Por entre a capa de nuvens, o sol escaldava-lhes a nuca. Tiago suava, aquele pobre burro devia estar a passar por um calvário.

— Não foi assim, se queres saber — informou Carola. Era altura de acabar com os subentendidos. — Pensas que o céu ficou desta cor, quando aconteceu…?

A verdade é que nenhum deles sabia ao certo.

Estavam expostos, como dois condenados. O quintal era fundo, cheio de árvores, mas nenhum ramo oferecia a protecção da folhagem. Novo orneio do burro, um lamento interminável.

— Não gosto disto. OK? Não faças de conta que está tudo bem. Tens vontade de te estender na espreguiçadeira? Porque eu, não. — Movia-se às voltas, à procura de uma solução que lhe tivesse escapado. Os muros eram altos, não havia ali nenhuma escada; sozinho, não seria capaz de elevar Carola. — Se ao menos o Bartolomeu estivesse aqui…

— O que é que nos fazia que ele estivesse aqui? — e Carola desafiou-o, enquanto simulava um murro afectuoso. — Caminha comigo, vá! Movimento!

Ele seguiu-a, pouco convencido, naquela marcha forçada, como se estivessem no recinto de uma penitenciária. O chão estava manchado de folhas, fruta podre, uma hecatombe de insectos. Um mosto pegajoso que se colava aos pés, incomodava. Deram a volta ao castanheiro e regressaram, em silêncio, até ele se decidir a falar de outra coisa:

— Há quanto tempo é que vocês se conhecem?

— Eu e o Bartolomeu? Desde sempre — Carola sorriu, lembrava-se de um rapazito no grémio, maior do que queria ser. — Mas amigos, a sério… dois anos, acho.

— Ele adora-te — disse Tiago, estupidamente, como se ela precisasse que lho revelasse. Ou como se lhe quisesse mostrar que estava em posição para o saber.

— Bem, ele é quase da família. Até o Natal costumamos passar juntos. Bom, isso a partir do próximo ano acabou, claro.

Segunda volta ao castanheiro, regressavam de novo ao ponto de partida.

— Acabou porquê?

— Então… Não dá muito jeito eu ir passar o Natal a Faro, pois não? — Ao ver a confusão no rosto do colega, Carola precisou, como se falasse de matéria sabida: — A Sofia, a noiva… Tiago, o Bartolomeu vai casar-se para o ano. Ele não te contou?

Tiago balbuciou palavras, sentiu-se ridículo, sem saber porquê. A caminhada fora uma má ideia, estava só a aumentar a exposição ao sol. Sentia a cara a arder, um veneno a roer-lhe os órgãos no interior. Era como se ela o tivesse atravessado com uma espada, e esperasse uma resposta normal, rotineira, que ele não era capaz de dar.

Mas então Carola soltou um grito horrorizado. Tiago, confuso, fixava a mão dela, e não a direcção que apontava. Ouviu o burro retomar a zurrada, mas agora era como se um silvo se tivesse substituído à audição. Quando enfim os olhos se voltaram para o fundo do quintal, sentiu que as pernas lhe falhavam. Um jovem homem estava enlaçado ao tronco nu do castanheiro. Tinha o corpo lacerado, o crânio em ferida, e apesar dos esgares ferozes que lhes lançava, havia nele qualquer coisa de suplicante, como um animal que morre.

 

*

 

A sala distinguia-se por uma decoração pesada que conjugava todos os estilos. Uma torrente de quadros e molduras, estátuas, objectos antigos, cómodas, contadores, cadeiras de verga, lampadários, cristaleiras, plantas em mesinhas de pé alto, tapetes de Arraiolos, até roupas de criança encaixilhadas, como se cada espaço tivesse de ser minuciosamente preenchido. O recheio intimidava Elda, que se mexia com cuidado para não deitar abaixo a máquina da tipografia ou o busto da República. Estavam enclausurados naquele andar, como num museu; portas fechadas à chave. Mas o sol trespassava pelos vitrais art nouveau, enchia de luz Bartolomeu, que se sentara de pernas cruzadas em frente à estante de livros de arte, a desfolhar álbuns.

Elda chegou-se ao colega, que passou do impulso de esconder ao de mostrar a imagem.

— Egon Schiele. Morreu novíssimo, de gripe espanhola. Sabias?

Elda não sabia quem fora Egon Schiele. E mesmo a gripe espanhola… Espreitou a estampa: o retrato anguloso parecia provocá-la para um duelo.

— Ouviste? — Bartolomeu imobilizou-se para escutar. De novo aquele barulho, um raspar de madeira. — Vem dali?

Mas vinha de um sítio diferente, de cada vez. Elda afastou um violoncelo, mas atrás ainda havia quatro caixas, um cesto com revistas. E o barulho já se deslocara.

— No quarto cor-de-rosa? — e Bartolomeu atravessou com passadas leves o corredor escuro, com o ouvido atento. Elda seguia-o, calada, olhava para os ombros largos do colega, repetia para si mesma que nada tinha a temer.

O quarto continuava vazio, atravancado de objectos contra as paredes forradas a papel desbotado. A presença do berço, junto à janela de persianas corridas, voltou a inquietá-la. Que frio não sentiria um bebé naquela divisão! Sugeriu:

— Voltamos lá para dentro?

— Achava que os outros podiam estar por aqui — Bartolomeu reabria os armários.

— Dentro das paredes, talvez?

Ele sorriu, mas ela nem estava a fazer uma piada. Espantou a ideia, que era medonha, enquanto Bartolomeu regressava ao bricabraque da sala de entrada, disse:

— Nunca vi uma coisa assim. E eu que achava a casa da Carola atafulha… — ao aperceber-se do que dizia, a frase morreu-lhe na boca. Que falta de tacto. Instalou-se um silêncio embaraçado que ele se decidiu a romper: — Dá-lhe tempo, Elda. Aquilo passa-lhe.

Desde a zanga com Carola, Elda passava os dias sozinha. Prestava pouca atenção ao que os colegas lhe diziam no Instituto: na maior parte das vezes eram frases irrelevantes que se destinavam sobretudo a demonstrar que não a ostracizavam — pelo menos, assim o intuía. Com Bartolomeu era diferente. Não fazia o estilo dele, e nem nunca tinham estabelecido um contacto a sério. Além disso, era ele o verdadeiro amigo de Carola, teria toda a legitimidade para desprezá-la.

— Não sei se passa — respondeu ela, em voz baixa. — E também não sei se mereço ser perdoada.

— Olha, o que tu fizeste… não vou dizer que não tem importância, mas tenho a certeza de que foi sem intenção. Às vezes as coisas tomam proporções sem nós querermos. Acredita, posso perceber. E toda a gente merece uma segunda oportunidade.

Elda sentiu-se emocionada. Teve vontade de dizer a Bartolomeu que o achava fenomenal, desde o início do projecto; que gostaria de ter sido menos obtusa e de ter feito tudo de outra forma, de ter procurado ganhar logo a sua amizade. Via agora por que ele conseguia tocar toda a gente, como podia ser amigo simultaneamente de Fernão e de Brísida, de Carola e de Tiago. Bartolomeu era a cola, era quem os podia juntar a todos.

Mas claro que não disse nada. Como sempre, receava cair no ridículo.

Ele tinha inteligência para pressentir quando era altura de mudar de assunto, e foi ligar o televisor. O ponto branco central demorou a alargar-se e a ceder a vez à imagem de um alvoroçado locutor de óculos, que pedia às pessoas para permanecerem calmas, encerradas em casa, e, sobretudo, para não abrirem a porta a estranhos. Bartolomeu e Elda trocaram um olhar desconfiado, e ele resolveu girar o botão para calar o aparelho.

Ficaram estáticos durante um bocado, a digerir a informação. O silêncio do apartamento, as portas trancadas por dentro, e mesmo os raios de sol que atravessavam a sala, de repente convertiam-se em sinais de alarme. Mas era o Rest.2, afinal, havia que desanuviar.

— Viste a camisa do apresentador? Que susto… — brincou Elda.

— Podes crer. Tirem-me dos anos sessenta!

Riram-se ambos, e ele ia para dizer mais qualquer coisa quando uma pancada seca, vigorosa, bateu na porta de entrada.

 

*

 

Não lhes fora gritado nenhum pedido, e a campainha nunca chegara a tocar. As pancadas continuavam a fazer-se sentir na sala, a intervalos regulares, de cada vez um baque violento, como se um corpo teimasse em atirar-se contra a porta com toda a força. Bartolomeu e Elda dirigiram-se para a cozinha, às arrecuas, e, sob pressão, ele agarrara como arma uma escultura de mármore. Elda teve um sobressalto ao ouvir um barulho semelhante vindo dos fundos. Uma outra porta, no anexo da cozinha, recebia batidas repetidas e dava sinais de querer ceder: estavam sob ataque. A dada altura, uma barra de ferro fendeu a madeira, e logo depois uma mão surgiu pela racha, a tactear nervosamente a superfície à procura do trinco. Bartolomeu preparou-se, ergueu a escultura.

— Espera! — e Elda aproximou-se da porta. — É o Fernão!

Assim que abriram a porta, os quatro colegas precipitaram-se para a cozinha, sujos de pó, a espalhar terra pelo chão. Fernão trazia um cabide de ferro na mão esquerda, e corria-lhe sangue por uma ferida.

— É a segunda porta que deito abaixo com isto — explicou ele, indicando Tiago e Carola, que salvara do quintal. Carola abraçou-se a Bartolomeu, que lançou um olhar fugidio a Tiago: estavam mesmo bem? Mas o colega baixou os olhos.

— Vocês não viram nada? Ninguém? — perguntou Brísida.

— Está alguém à porta de entrada — e um baque distante veio ilustrar o que afirmava Elda. — Na televisão disseram… Não se deve abrir.

Os impulsores entraram na sala banhada de luz, onde a porta estremecia, a uma cadência cada vez mais próxima. Dava a impressão de que se tinham juntado à porta vários assaltantes, que se revezavam nos esforços despendidos para a deitar abaixo.

— E que tal barrar a porta com os móveis? Não vos passou pela cabeça? — Por momentos, Tiago readquiriu o mesmo tom antipático de antigamente.

Bartolomeu cabeceou, mas pôs-se logo à obra: era claro. Enquanto os colegas o ajudavam a abrir caminho por entre toda aquela tralha, chegavam agora, vindos lá de fora, uns grunhidos animalescos que nunca tinha ouvido: roncos de fome.

— Estás bem? — perguntou Bartolomeu, enquanto empurrava a mesa de mogno.

— Depois falamos — pediu Tiago, em voz baixa.

Carola enrolava em torno da ferida de Fernão a faixa que rasgara da manga da camisa. Mostrava-se concentradíssima na tarefa, a ponto de ficar com os olhos vesgos.

— Ei, nada disto existe — lembrou ele, baixinho. — Não te impressiones.

Ela sacudiu a cabeça. Mas o que aconteceria se a porta viesse abaixo?

Por sua vez, quando percebeu que não se ia aguentar em pé, Brísida ainda tentou sair da sala, mas não foi a tempo. Ajoelhou-se a um canto, de cabeça baixa, à espera que a tontura passasse, procurando não dar nas vistas.

— O que é que se passa?… — Elda, outra vez.

— Não é nada — tentou acalmá-la Brísida. — Já passa.

Elda afastou-se, e ela tentou ganhar ar. Se conseguisse não ceder ao pânico, não sofreria ataque nenhum. Tudo dependia da sua mente. Entretanto, a colega voltava da cozinha com um pano molhado que lhe passou pelo rosto.

— Estica um bocado as pernas — aconselhou Elda, agachada ao seu lado.

A outra agradeceu, melindrada.

Naquele momento, a grossa maçaneta da porta caiu ao chão. Apenas a barricada improvisada impedia os invasores de entrar na casa, e os colegas continuavam a adicionar os objectos mais inúteis. Elda levantou-se, atarantada, sem saber como chamar a atenção para o mal-estar de Brísida, e aproximou-se deles. A fim de contribuir para a defesa, Carola pegara num vaso de porcelana; e só se consciencializou do gesto inútil ao reparar na expressão da ex-amiga, tingida de vermelho pelos vitrais. Ficaram as duas a olhar uma para a outra, suspensas no instante, até que, sob o estrondo de vidro partido, uma mão penetrou no interior e agarrou uma madeixa do cabelo de Elda, provocando-lhe um grito de horror.

Enquanto os rapazes acudiam, Carola lançou o vaso de porcelana à mão, que libertou a vítima. Mas agora os vultos amontoavam-se, no exterior, diante dos vitrais, que, por um esquecimento estúpido, ninguém se lembrara de proteger. Estilhaços de vidro saltavam de todos os lados e deixavam à mostra, como um esqueleto, a simples armação de ferro que se interpunha entre os dois mundos. Furavam-na joelhos descarnados e mãos ensanguentadas, numa profusão de urros e guinchos.

Outro som atraiu a atenção de Brísida. Vinha dos quartos de dentro, um vagido irreal que lhe dava forças para se levantar e ausentar-se do cenário tétrico, como se entrasse num sonho. Percorreu o corredor escuro, sem receio de inimigos. Guiava-se pelo choro distante que a solicitava.

Acendeu a luz do quarto cor-de-rosa, o frio gelou-lhe os dedos. E avançou.

— Ei! — pegou com as duas mãos o bebé desamparado no berço. — Estou aqui…

A criatura aninhou-se contra ela, a agitar as mãozinhas, procurou com a boca um bico do seio. Nada tinha para lhe dar. Brísida aconchegou-o, envolveu-o com o seu calor, sussurrou-lhe à orelha. O pulsar do coração que batia junto ao seu era um pulsar da vida, omnipresente. Ia além dela, prometia muito mais do que conhecia. E Brísida tomou então uma decisão.

 

5

— Não, Brísida, agora são férias. E hoje foi perigroso — afirmou Marcello.

— Se achou isso, porque é que não interrompeu a ligação?

— Nenhum de vocês accionou a pulseira…

Era uma resposta sem sentido. Mas ela não se ia deixar levar. Insistiu no pedido:

— Não posso ir uma semana para o Porto com uma casa assombrada na cabeça. Vá lá, só preciso de meia hora, só isso.

Os outros impulsores já tinham deixado o Instituto, Brísida fora ficando. Marcello temera que ela viesse com novas hipóteses sobre Flávio Hirpo ou os objectivos do projecto. Afinal, queria um tempo adicional de ligação para limpar o espírito de fantasmas. Não era o tipo de coisas que pedia habitualmente. Acabou por anuir:

— Bem, quinze minutos. Não quero que corres riscos, já foste muito exposta hoje.

— Obrigada. Podem ser vinte?

Precisava de pelo menos dez para chegar ao ponto de acesso, e isto já partindo do pressuposto que não se enganava com nenhum código. Estava bastante cansada, mas assim que se sentou à secretária começou de imediato a trabalhar. Pelo canto do olho, através da janela, pressentia o ondular das espigas de trigo ao vento: ajudava-a a concentrar-se. Mas, e como já esperava que acontecesse, a dada altura viu surgir um vulto na cadeira de vime junto à janela. Antecipou-se:

Quero-o lá fora. No campo.

O mestre Simões não teve tempo de responder. A figura foi transferida para terreno longínquo, onde não a podia importunar.

E Brísida, desta vez, nem hesitou. Sim, queria conhecer o que lhe reservava o seu Curriculum, e para isso não precisava de licenças de ninguém.

Primeiro, estava de regresso à casa de Espinho: a avó Miriam subia as mesmas escadas, mas as janelas estavam abertas, a luz invadia a cozinha, o corredor, o quarto cor-de-rosa. Pegava no bebé com modos calmos e determinados, descobria o bico do seio, alimentava-o. E era Brísida quem sugava aquele leite, recém-nascida, mas já era outro tempo, e Úrsula acalentava-a no berço de madeira que sabia ser o seu, na casa do Porto onde crescera; ao lado da mãe, na ponta dos pés, Verónica espreitava atónita aquele estranho ser que lhe ocupava metade do quarto, e logo se desmanchava em risos deliciados enquanto o pai a pegava pela cintura, a fazia voar. Mas já era a própria Brísida a sentir-se cingida, por outras mãos, noutro contexto: um quarto de pensão com Nuno, aquele primeiro enlace de juventude, e as ridículas flores de papel num jarro em cima da mesa, a olharem para ela, ou ao contrário.

Brísida recuou, voltou à base com um gesto brusco. Estava de novo sentada à secretária, diante da tela de comandos. Passou a mão pela testa humedecida, respirou. O coração acelerara, mas aquilo ainda não era nada, só a primeira camada da casca de um fruto, e o Curriculum era o caroço. Restavam-lhe três, quatro minutos? Se Marcello a fizesse voltar agora, sairia dali sem nada, e depois teria toda uma semana para ganhar bom senso, tomar a decisão irrevogável de afastar-se daquele desígnio irracional.

Conhecia-se bem, era contra si que lutava.

Mergulhou de cabeça, o mais fundo que conseguiu. Eram só comandos, e até os dedos com que os inseria na tela eram produto da sua mente, mas aceder ao Curriculum era um movimento de corpo, o que punha em jogo eram os seus ossos e a sua carne, o sangue que lhe corria pelas veias.

Novo cenário: caminhava ao sol, depois à sombra de prédios que lhe pareciam altíssimos, grandes rectângulos desenhados no asfalto. Ocupava o seu corpo e simultaneamente via-se de fora, num desdobramento inexplicável. Não reconhecia as ruas, nem aquela praça que servia de parque de estacionamento, mas sabia que não era o Porto. E, se alçasse a cabeça, protegesse a vista com os dedos estendidos, conseguia identificar a sua janela, o apartamento a que pertencia, por entre dezenas de outras janelas de apartamentos semelhantes, com estores meio corridos e estendais de roupa. Mas a família tinha mudado para ali, havia meses? Nem se podia chamar àquilo uma cidade, eram anexos, um subúrbio em construção. E o mais espantoso, o mais assustador, o que tornava a situação impossível e perigosa, e acima de tudo intolerável, é que ela tinha a certeza absoluta de não estar a relembrar uma situação passada, nem a antever uma futura. Era como se vivesse aquele momento no presente — mas isso não podia ser.

À porta do café, um cão coçava as pulgas, pachorrento, de barriga estendida ao sol; depois uma criança saía lá de dentro, andava ali às voltas a chatear o bicho até ele se levantar e ir procurar outro sítio para dormitar — e isso para ela era o decorrer normal das coisas. Vivia na primeira pessoa aquele ambiente que não entendia, que não era o seu. Poderia aceitá-lo num capítulo do Rest.2, mas não se tratava disso. Aquele era o seu Curriculum, uma porta para o fundo de si mesma, sabia que podia confiar naquela realidade.

Ao longe, os carros circulavam por uma avenida, junto ao gradeado que cercava pavilhões azuis. Brísida atravessou a passadeira, desceu a rua em forma de curva, a esgrimir a vista contra o sol ofuscante. Levava na mão cadernos, um dossiê de argolas forrado com fotografias. Ao chegar ao fundo, um veículo estava estacionado contra a berma, com os quatro piscas acesos. Ela estendeu o braço, abriu a porta da frente.

— Olá, pai — disse ela, enquanto atirava os cadernos para o chão.

Horácio passou-lhe a mão pelo ombro, deu-lhe um beijinho.

— Como é que correu a escola?

— Ai, aquela stora de História não se pode…

— Ok. Um dia normal, então.

O pai rodou a chave, engatou a mudança, olhou pelo espelho para ver se vinha alguém. E então, de repente, a experiência interrompeu-se. Os três minutos chegavam ao fim, e ela sentiu que era puxada de regresso. Despertou no módulo, como se regressasse de uma hipnose, Marcello estava de novo à sua frente:

— Estás bem? Conseguiste mudar ideias?

— Eu… Sim, estou bem. Obrigada.

Um mundo novo abria-se para ela.