07

ENSAIOS

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Elda
Bartolomeu
Carola
Fernão
Brísida
Tiago
Marcello

1

Bartolomeu no quarto de BrísidaMarcello trazia um vinco de preocupação domesticado na fronte. Via-se que alguma coisa o andava a incomodar, e havia dias que aquilo durava. O seu estado de ansiedade tingia agora os jantares, outrora tão vivazes, como se as funções de agente da Bóreas se tivessem expandido àquela casa onde Bartolomeu aprendera a conhecê-lo em vestes familiares. A notícia surgira sem pré-aviso: no dia seguinte, voaria para Copenhaga, na avioneta da Bóreas, com regresso agendado para domingo. Bartolomeu sentiu-se quase desconsiderado pela forma como lhe fora comunicada a viagem, mas acenou com a cabeça. Não era de fazer perguntas, e confiava nas razões do tutor.

O caso mudou de figura quando, como se fosse tema secundário, Marcello lhe disse que, na sua ausência, preferia que ele não participasse na festa do equinócio. Por hábito, Bartolomeu conseguia fazer deslizar a casca da maçã por entre os dedos numa só tira, mas deu um mau jeito com a faca e metade caiu no prato.

— Está a brincar? — perguntou o rapaz, incrédulo. — Vou todos os anos. Toda a gente vai! Não pode estar a falar a sério.

— Eu não estou cá. E tu sabes bem que…

Marcello calou-se; nunca se decidia a falar daquele assunto abertamente.

— Sei que o Conselho o encarregou de vigiar o meu «bom comportamento» — interpretou Bartolomeu, atingido na sua dignidade. — Mas eu não sou uma criança, sei tomar conta de mim mesmo. Todos estes anos… acha que eu não sabia o que o Conselho esperava de mim, o que me estava destinado? Acha que os meus pais não sabiam? Não foi por isso que deixei de viver, de ir a todas as festas cíclicas.

— Mas eras mais novo, era diverso. E agora há outros factores…

— Que factores? Está a falar do quê?

— Eu vi, Bartolomeu. Brísida e tu, na última ligação de interacção…

— Mas não era eu! Era eu, mas não era eu. Sabe isso muito bem.

Marcello deixou-o gerir sozinho o silêncio desconfortável que se seguiu.

A verdade é que Bartolomeu era o primeiro a ter consciência de que a história extravasava o Rest.2. Desde que Brísida o beijara naquela noite no Torel, transigia com um jogo arriscado. Nada de muito concreto, nada para que pudesse apontar e dizer «isto». Mas, diante dos passes da colega, deixara planar uma incerteza, o vislumbre de uma predisposição, como se essa ambiguidade o protegesse.

— Eu tenho uma noiva — reafirmou o rapaz, decidido a retomar o controlo. — Sei que não me posso envolver em relacionamentos. Isso está claro para mim, há muito tempo. Mas vou à festa, não me pode impedir. Não preciso de um preceptor, Marcello, você não é meu pai nem me é nada. Só tem de nos manter a salvo no Rest. A julgar pelo que aconteceu ao Flávio, não sei se está a fazer um grande trabalho.

Marcello acusou o golpe. Eram palavras medidas, com o intuito de magoar.

Quando Morgana Derves procurara o tutor para o pôr a par das decisões do Conselho, fora peremptória: cabia-lhe evitar pessoalmente quaisquer deslizes de Bartolomeu ou o projecto sofreria as consequências. Mas Marcello detestava o papel de vigia. O rapaz era sério, responsável, e a viagem a Copenhaga não podia ser cancelada. Que alternativa tinha? O mais provável era que os pais de Bartolomeu também fossem à festa cíclica, e não o podia mandar prender.

— O que posso dizer? Está bem, vais à festa — concluiu, perante um Bartolomeu que mantinha o semblante altivo. — Mas agora ouves. Já tive a tua idade. Sei que temos vontades… desejos que são naturais.

Bartolomeu corou. Era a conversa.

— Por favor, não tem de me dizer nada disso…

Se Morgana Derves o ouvisse, arranjaria forma de o demitir de imediato. Mas isso não demoveu Marcello:

— O que quero dizer é que sabes que há doenças… Se acontecia qualquer coisa… agora ou numa altura outra… lembras-te sempre que tens de te proteger.

— Sim, eu sei — apressou-se Bartolomeu.

— Estou a falar de preservativos.

— Percebi.

— E se tens dúvidas, podes falar comigo. Sobre o que queres, sem medos.

Despachar aquele assunto, urgentemente: Bartolomeu pôs-se a descrever a festa com todos os pormenores. Marcello não demoraria a aderir ao mutismo dos últimos dias, mergulharia nos seus mistérios. Já passara. Apesar do embaraço, o rapaz sentiu-se reconhecido. O seu pai nunca lhe dissera aquilo.

 

*

 

Na manhã do dia seguinte, Bartolomeu estendeu o mapa da cidade na mesa da sala de impulsão e assinalou uma zona a ocidente, longe das muralhas:

— É aqui. Belém.

Para os colegas que vinham de fora, e que viviam a primeira festa cíclica em Lisboa, o nome recordava aulas de história, um bairro fora do tempo. Não sabiam o que esperar encontrar ali.

— Fácil. Prédios a apodrecer, estradas cheias de buracos e uma selva de arbustos — resumiu Fernão. Não que tivesse chegado tão longe nas suas deambulações nocturnas com Lisa, mas uma calçada escaqueirada valia outra. Os cenários da ruína tinham-se-lhe tornado familiares.

— Cala-te, já pareces o outro caramelo! — riu-se Carola.

Por cima dos colegas, Bartolomeu olhou para o fundo da sala, onde Tiago se refugiara. Sempre isolado.

— Mas é tão longe da zona protegida… — observou Elda.

— Oh! Zona protegida… Balelas! — Fernão estalou a língua, com desdém.

— Dizem isso para nos manterem sob controlo — concordou Carola. — Há anos que não há ataques. E os noc… os noctívagos foram para o interior.

Bartolomeu olhou para a amiga. Com aquela referência, impossível não pensar em Óscar, o irmão desaparecido. Lembrou:

— Mesmo lá, nestas alturas, o espaço é delimitado, há guardas em todo o lado.

— Lisboa é atrofiante — decretou Fernão. — Em Setúbal, sempre há outra liberdade, até no ano novo vamos para a Arrábida. E no solstício desce-se à praia.

— Se é por isso, amanhã também podes ir à praia — notou Carola.

Um daqueles rituais pagãos dos tempos modernos. Noite adentro, lançavam-se barquinhos da praia de Belém. Vagavam, com preces e ex-votos, em direcção ao mar alto.

— Não imaginam o que foi explicar isso ontem ao Marcello — contou Bartolomeu —, perguntou-me se os barcos iam «para o Maroco»!

Todos se riram, capazes de imaginar a cena. Mas Bartolomeu sentiu que estava a tentar enganar-se a si próprio. A conversa com Marcello fora tudo menos divertida.

— E tu? Estás entusiasmada? — perguntou a Brísida. Dissera aquilo com desembaraço, a tentar instaurar um interesse natural em frente aos colegas. Mas a rapariga, apagada, respondeu só para ele:

— Ainda não sei se vou… A minha irmã amanhã volta para o hospital. Não, nada de cuidado, regressa no domingo, mas… não sei se estou com ânimo para festas.

Bartolomeu não encontrou o que dizer, e instalou-se um silêncio constrangedor. Foi Carola quem exprimiu pesar em voz alta, e acabou por incentivá-la:

— Não vais ficar em casa sozinha, pois não? De qualquer modo, à noite não podes ir visitá-la.

— Mas Belém ainda é longe. — Fernão olhava bem para o mapa. — Como é que se vai para lá?

— Há transportes. Encontramo-nos à porta do Rato, temos é de combinar bem onde. Há sempre montes de gente à espera antes do pôr-do-sol.

— Como vampiros.

Era Tiago, que se aproximara sem se fazer notar. Ninguém respondeu à provocação, continuaram a falar como se ele não existisse. Só Bartolomeu sorriu discretamente. Ele já reparara que as farpas do colega, dantes tão antipáticas e desagradáveis, se vinham transformando em reparos assim, inofensivos, até engraçados. Nas últimas semanas, dava-se por ele no meio do grupo, sempre calado e sorrateiro, mas sem demonstrar uma animosidade ostensiva.

Quando o grupo dispersou, Bartolomeu lembrou-se de propor:

— Porque não vens connosco amanhã? Para ti deve ser uma novidade… — E só então se deu conta de que nem tinha a certeza da naturalidade dele. — Quer dizer, tu não és lisboeta, pois não?

Tiago olhou para o colega de forma desconfiada, mas lá acabou por responder:

— Nasci aqui. Mas tenho vivido fora.

— Fora? Noutra cidade?

— Fora, lá fora. No estrangeiro. Copenhaga, Milão… no Brasil.

— No Brasil? — Os olhos de Bartolomeu iluminaram-se. O Brasil era uma miragem. — Onde? Quando é que…?

— É assim tão empolgante para ti? — Tiago riu-se. — No Rio de Janeiro. Um ano e meio, pouco antes do início desta brincadeira. Devia era lá ter ficado.

Marcello entrava na sala nesse momento, o que punha fim às conversas. Mas Bartolomeu ainda insistiu com o colega:

— Amanhã… Vem connosco, a sério. Vai ser porreiro. E contas-me mais. — Tiago não soube bem o que responder. E Bartolomeu acrescentou, com aquela sua simplicidade calorosa: — Ou tens alguma coisa melhor para fazer?

           

*

 

Bartolomeu levava horas a nadar, mas, apesar do esforço acumulado, ainda não estava naquele ponto em que a tensão se libertava e podia sentir o corpo diluir-se no mar. Mais um esforço, pensou. Mas então distraiu-se com uma voz, um chamamento pouco perceptível: uma canção? Estava no meio do oceano, nenhum sinal de terra no horizonte. Tentou continuar as braçadas sem prestar atenção, mas o som ouvia-se à distância e desconcentrava-o, fazia-o interromper os movimentos. Contrariado, a arfar, fechou os olhos com uma invectiva.

Quando os reabriu, estava numa piscina, que não faria mais do que nove metros, nos jardins de uma casa de campo. Abrigados sob um guarda-sol, Carola, Fernão e Elda comiam alperces e conversavam enquanto ouviam música na rádio. É uma ligação de interacção!, pensou. Mas o Marcello não avisou Sentiu um grande pânico. Embora chamasse os colegas pelos nomes, estes pareciam não o conseguir ouvir. Aquela música… era aquilo a bossa nova? Saiu da piscina para ir ter com eles. De costas, Carola devia estar a contar alguma coisa hilariante, porque tanto Fernão como Elda, recostados em espreguiçadeiras de madeira, não paravam de rir. Aproximou-se, sentindo um intenso cheiro a cloro na própria pele. Já não estou acostumado, pensou com um sorriso.

— Ei, sabem onde estamos?

Sem se virar, Carola repetia efusivamente, para deleite de Fernão e Elda:

— Todo nu! Estava todo nu!

— Quem é que estava todo nu? — quis saber Bartolomeu.

Carola voltou-se, olhou-o de alto a baixo e explodiu numa gargalhada. Só então Bartolomeu percebeu: ele próprio estava todo nu! Tapou-se com as mãos, embaraçado, e pôs-se à procura dos calções de banho sem os encontrar.

— Passem-me uma toalha — pediu, a tentar disfarçar a atrapalhação.

— Uma toalha?! — Carola fez uma expressão maliciosa. — Achas que isso serve para alguma coisa?

— Toda a gente pode ver… — acusou Elda, de forma agressiva.

— Não, mas… não tenho culpa! — defendeu-se o rapaz.

— Cuidado, eles vêm aí — Fernão indicou o caminho que descia da casa atrás de si, e ele identificou ao longe os seus pais, envelhecidos, claudicantes. O amigo alertou-o: — Vão descobrir, não tarda nada.

Bartolomeu fechou os olhos com força. Nunca foi tão estranho. Como é que o Marcello?…

Quando reabriu os olhos, a primeira coisa que verificou, com alívio, foi que tinha as roupas vestidas. Mas Brísida estava agarrada ao seu braço, aflita. Encontravam-se sentados na quilha de um velho barco de madeira, que o mar fazia ondular. Estranhamente, era de noite e não conseguia avistar terra em lado nenhum, um denso nevoeiro cobrira tudo. Sentia os músculos presos e o corpo gelado.

— Aonde vamos? Estou cheio de frio — queixou-se a Brísida.

— E assim? — perguntou a colega, enquanto lhe esfregava os joelhos com as mãos. — É melhor, não é?

Não sinto nada, pensou Bartolomeu. O barco estabilizara-se. Por entre o nevoeiro, pareceu-lhe distinguir no vulto do timoneiro, que conduzia a embarcação de costas, a figura de Marcello. Mas isso não era possível: o tutor tinha imunidade, não podia comparecer no Rest.

— Shhh. Ele não nos vê — segredou Brísida, enquanto aproximava o rosto do seu para o beijar. — Com este nevoeiro…

Então, o tutor virou-se para ele e manifestou-se, num português perfeito:

— Não te preocupes, estás a fazer tudo como deve ser. Mas a água não devia estar a entrar aqui. Sabes bem.

Só então Bartolomeu percebeu que uma racha no casco estava a fazer inundar o barco. Sentia-se petrificado, incapaz de reagir. A seu lado, a companheira usava um copo minúsculo para deitar água pela borda fora.

Isso não serve de nada, pensou Bartolomeu.

— A viagem já começou! — exclamou Marcello. E acrescentou, numa gargalhada: — Para Sul. Rumo «ao Maroco»!

Bartolomeu cerrou as pálpebras de novo, à espera de recuperar a sensibilidade. Ao fim de uns instantes, sentiu-se invadir por aquele misto de leveza e força que o seu corpo adquiria no mar. Abriu então os olhos, estava em pleno oceano. Com alívio, deu três braçadas e foi embater noutro corpo. Tiago. O colega, pelos vistos, também sabia nadar.

— Vamos para o Brasil? — perguntou o outro rapaz.

— O Brasil? Não fica longe?

— Tens alguma coisa melhor para fazer?

E nesse momento Bartolomeu acordou na sua cama.

 

2

Encheu os pulmões de ar fresco da noite, enquanto aguardava parado na fila para as chamuças. Quando se respirava mesmo fundo, assim, dava para sentir, por entre o cheiro forte a alho e a salsa, um resquício de maresia. O Tejo ficava ali ao lado. Para empatar a espera, Bartolomeu percorreu com os olhos os carreiros da praça do Império pejados de gente. Sabia bem ver os lisboetas fora da cidade murada, personagens animadas ao som de música, aplausos, canecas que entrechocavam. Perscrutava rostos por entre a multidão, traços precisos, sorrisos abertos dissimulando talvez histórias ocultas. E distinguiu então um casal de adolescentes, mãos nas mãos, afastar-se dos archotes que iluminavam a zona, e avançar em direcção às grades que serviam de limite. Bartolomeu reconhecia as manhas, sabia que aqueles dois se preparavam para fugir em direcção ao antigo Jardim Tropical. Ele mesmo o fizera em grupo, em anos anteriores, sabia já o que os esperava: um lugar desolado, de terra queimada. Seria essa a causa daquela tristeza que o invadia enquanto os seguia com o olhar, quase hipnotizado, e via o rapaz agarrar a rapariga pela cintura, fazê-la passar a barreira?

 Chegou-se à mesa, fez a piada de todos os anos:

— Minha senhora, aceita fiado?

A mãe deliciava-se sempre, soltava aquele riso desenfreado que parecia guardar para as festas do equinócio e do Natal. A trocar as sílabas, como acontecia sempre que se entusiasmava, Marisa interrompeu o serviço e chamou as colegas, que celebraram o rapaz com muitos beijos. Ia sair dali com as melhores chamuças, estava visto.

Andou às voltas, sem se resolver a voltar para a relva onde tinham acampado horas antes. Sentia-se deslocado naquela noite, um peixe fora da água. Ele e os colegas formavam um bando à parte: já não eram alunos de liceu, mas também não se enquadravam propriamente na categoria de trabalhadores.

Àquela hora, os namorados evadidos já teriam chegado ao destino. Estariam sozinhos, longe de todos, numa intimidade crescente que ele nunca conhecera e nem sequer compreendia bem — mas afastou a ideia da cabeça. A noite era fria e entre os dois não havia de se passar nada.

Já se ouvia a pouca distância a voz de Fernão. Estava a mil. Trouxera várias garrafas na mochila, álcool importado, cortesia do irmão Jacinto. Não se encontrava explicação para um estivador ter acesso a produtos que custavam caro no mercado, mas Bartolomeu não fizera perguntas. Talvez contrabando.

Lá estava a toalha. Quarenta metros, era o que lhe restava para se juntar ao grupo, e não tinha vontade de anular esse espaço, mas nem sabia porquê.

— Então? — Carola vinha na sua direcção. — Estava a ver que não.

— Montes de gente — justificou-se o rapaz. — E tu? Aonde vais?

— Dar uma volta. Vens? — Mesmo se Carola não tinha destino nenhum, ele não hesitou em acompanhá-la. — Isto este ano está murcho. Ou se calhar é impressão minha. Não sei, não sinto aquela pica…

Com uma expressão, Bartolomeu revelou que estavam em sintonia. Caminhavam por entre troncos de árvores descarnados. Ele passou-lhe uma chamuça.

— Obrigada, foi a tua mãe? Ainda não a fui ver. Hum, óptima. Não viste ninguém do liceu? Gostava de encontrar gente.

— Devem andar por aí. De certeza. — Os antigos amigos possuíam agora título de trabalhadores, quantos não seriam já casados? Certamente, já não furavam a zona protegida. Deixava que um gosto amargo o envenenasse. — É o meu último ano aqui, já pensaste nisso, Cenoura? Para o ano, o Sul.

Carola suspirou.

— Nem quero pensar. Mas enfim… Também não é outro país. De vez em quando hás-de vir cá dar um salto.

Ocupado com a mulher a fabricar descendência; estava-se mesmo a ver…

— A propósito, já lhes contaste? — lançou Carola. Bartolomeu demorou a compreender que se referia aos colegas do Instituto. — Ou ainda é segredo de estado?

— Ao Fernão. Há tempos.

— Ah. É que a Brísida… parece-me um bocado embalada. Hã? Que dizes?

— Achas que lhe ando a fazer olhinhos? — Bartolomeu leu nas entrelinhas, irritado. — Estás a sonhar. É uma colega, só isso, como a Elda é uma colega. Mas posso dizer-lhe, posso dizer a todos. Até tens razão, mais vale ficarem a saber.

Nesse momento, a música aumentou de volume e os tambores começaram a rolar. Os Jerónimos iluminaram-se e as pessoas levantavam-se, começavam a afluir ao mosteiro. Ia ter início o espectáculo da independência. Tudo menos isso.

— Voltamos? — Era quase uma pergunta de retórica, a dele.

— Voltamos. Ei, olha quem está ali… — notou Carola.

Era ele, era Tiago. Não fora ter com eles ao largo do Rato, à hora marcada, toda a gente supusera que decidira não vir. Afinal, viera. Parecia envolvido numa discussão acalorada com um rapaz louro, de boina, que cerrara os punhos.

— Sabes que mais, Filipe? Vai… — e Tiago lançou uma expressão grosseira.

A coisa ameaçava degenerar. Carola preparava-se para voltar para trás, mas Bartolomeu fez-lhe sinal para aguardar.

— Deixa-o lá, o gajo não… — mas Carola nem pôde concluir a frase. O tal rapaz louro virara costas, Tiago dera meia volta na direcção deles, e Bartolomeu já erguia cinco dedos que captaram logo a atenção do sexto impulsor.

           

*

 

O espectáculo era, como sempre, tão monumental quanto deprimente: após meia hora de homenagens à «gesta dos Descobrimentos», transitava sem pausas para as dramatizações da «peste branca», com bailarinas vestidas de estrela solar a assolar as naves dos portugueses que regressavam à pátria. Durante o tempo da representação, não eram assim tão poucos os vencidos da vida que, como Dara Jurado, se punham a salvo junto ao rio, mas Bartolomeu podia ter a certeza de que os seus pais se encontravam entre a assistência. Apesar de o seu grupo se manter a boa distância, não havia escapatória para o ruído. De certo modo, também era partícipe daquelas cenas pesadas.

Os clarões luminosos chegavam-lhes ao relvado, e tornavam a pele de Brísida um caleidoscópio. Ela aproximara-se, procurava-o de novo com aqueles olhos grandes e doces. Passara a noite a prodigar-lhe sorrisos, que ele nem sempre sabia como retribuir. Os silêncios eram quase mais difíceis de gerir do que as conversas carregadas de segundas intenções.

— Os teus pais não andam por aí? — perguntou Brísida a Elda, e Bartolomeu sentiu vergonha do tom falso da colega. Agora que Carola se levantara para ir ter com a avó, já só tinha de se descartar daquele fardo.

— Quem é que quer estar com os pais? — antecipou-se ele, e debruçou-se para pegar na garrafa. Aproveitava para mudar de posição, de modo a evitar o contacto.

Pensou no que Carola lhe dissera antes. Era verdade que ele próprio dera azo àquele jogo com Brísida. Não sabia porquê: ele não podia, na cabeça dele estava claro. Aliás, o que sentia por ela limitava-se a uma natural simpatia, não era mais do que isso. Aquilo tinha de parar.

Sabem uma coisa, sou fértil, treinava dentro de si. Mas como é que se introduzia um assunto daqueles? Bartolomeu não se conseguia decidir, e de repente levantou-se:

— Tenho de ir à casa de banho — respondeu, com um sorriso constrangido, ao olhar impaciente da colega.

— E levas a garrafa? — perguntou ela, num tom de censura. Por um momento, Bartolomeu sentiu que o seu rosto transparente o traía, já não era capaz de continuar a fingir. E Brísida foi mais rápida, enxotou-o com a mão e uma frase entrecortada: — Olha, vai. Não sei para que é que…

E ele afastou-se, com a imagem da expressão perdida de Elda.

Deambulou junto ao rio uns bons minutos, a tentar esvaziar a cabeça. Era tão raro caminhar sozinho ao ar livre que, por momentos, chegou a pensar que estava no Rest.2. Mas naquele estuário escuro e poluído não poderia nadar. Um mundo sem magia, simplesmente mais escancarado. Bartolomeu levou a garrafa à boca, bebeu três goles daquela poção amarga que lhe queimava a garganta e o aquecia. Dali a pouco, os espectadores convergiriam todos à praia para lançar as preces ao mar. Quanto mais longe estivesse, melhor. Que festa! E ele que insistira tanto com Marcello para ir.

Ao fim de uns minutos, lá os encontrou, sentados à beira do rio.

— Senta-te aí, Bartolomeu — convidou Lisa. — Aquilo ainda dura?

O rapaz abriu os braços como para demonstrar uma evidência.

— Queres? — Fernão passou-lhe o cigarro, quando ele se sentou.

Bartolomeu deu uma passa, expirou, deixou-se estar um pouco em silêncio a olhar para as estrelas. A brisa sabia bem.

Ao longe, ouviam-se notas anunciadoras do ponto culminante do espectáculo. Fernão aconchegara-se no regaço da namorada, que começara a fazer-lhe cócegas na barriga.

— Pára — pediu ele, a contorcer-se de leve, mas a voz dizia o contrário.

— Porquê? — sussurrou ela, e continuava, como se estivessem sozinhos.

Bartolomeu pegou de novo na garrafa que guardara no bolso, constatou que estava quase vazia. Deu outro gole e, num convite silencioso, estendeu-a para a sua direita.

— Obrigado — Tiago agarrou-a, bebeu o resto, depois fez uma careta engraçada. — Estava a precisar de um anestético.

— Dose mínima — considerou Bartolomeu.

— Não te preocupes, há mais — e o colega sacou da mochila outra garrafa.

— Até dava para abrirmos um negócio… É teu? — Bartolomeu virou-se para Fernão, mas ele já nem os ouvia, enrolado aos beijos com Lisa.

Tiago trocou com ele um olhar entendido:

— Estava aqui a fazer de vela há montes de tempo. Ainda bem que chegaste.

Ele riu-se, recebeu a nova garrafa, que o outro já abrira.

— Isto é o quê, aguardente?

— Cachaça. E esta não é dele, é minha. Também tenho os meus contactos.

— Estou a ver. Só eu não tenho contactos desses.

— Tu não podes. Tens de te portar bem, que és um rapaz exemplar.

Bartolomeu bebeu um trago, olhou para o colega a decidir se aquilo merecia resposta ou não. Tiago não desviou o olhar, mas também não lhe reservava aquele ar de escárnio que distribuía a torto e a direito. Estava a medi-lo, à espera de uma alfinetada. Bartolomeu soltou uma gargalhada, a bebida começava a bater-lhe, e o outro também se riu. Sentia que com aquele rapaz não tinha de ser simpático, era uma libertação.

— E como é que eu faço para deixar de ser exemplar?

— Não sei se consegues. Injectaram-te boas maneiras como uma droga. À seringa. Porradas de boas maneiras. Agora, está-te nos genes.

— Preciso de um tutor, para me deseducar! É do que eu preciso. Mesmo é. — Devia estar a começar a ficar bêbedo, sentia-se vagamente enfeitiçado — Que dizes, interessa-te? Tenho a certeza de que fazias um óptimo trabalho.

 

3

Bartolomeu subiu os últimos degraus do lance que conduzia ao segundo piso e hesitou entre as três portas do patamar. «É a da esquerda», balbuciou em voz baixa para se convencer. Era noite de festa, mas ainda assim um engano àquela hora não teria desculpa. «É esta, é a da esquerda», repetiu, «atina, meu!» Deu três pancadas convictas na madeira. Não precisou de esperar muito para que Brísida, em camisa de dormir, viesse abrir, alarmada.

— És tu… Que susto, pensei que a Verónica… — Na sua face, o sobressalto foi-se transformando num resto de desapontamento. — O que é que estás a fazer aqui a esta hora, Bartolomeu?

— Posso entrar?

Entrou. A jovem indicou-lhe o sofá, foi preparar-lhe um chá. Bartolomeu instalou-se, tinha os movimentos presos e sentia a cabeça a andar à roda. Num instante, Brísida estava de regresso, com uma caneca fumegante nas mãos.

— Foste-te embora — começou ele.

— Fui. Duas horas depois de teres desaparecido. O que é que queres que te diga?

— A Elda disse-me que ficaste chateada…

As palavras pareceram a Bartolomeu mais difíceis do que supusera no caminho para casa de Brísida. Sentada no canto oposto, esta não o ajudou, antes mostrou alguma impaciência face à cobardia ou inépcia do colega.

— Bartolomeu, é tarde e estou cansada. Cheiras a álcool. Se calhar é melhor deixarmos isto para amanhã, não achas?

— Há coisas que não sabes. Se eu te disser, vai-te parecer mais claro.

Brísida percebeu logo. Era uma despedida. Estava moída, não queria ter de passar por aquilo. Mas controlou-se.

— Fala.

— Eu sou fértil. Como a tua irmã. — Bartolomeu respirou e ganhou coragem para continuar. — Já sei há anos. Tenho um casamento arranjado, uma noiva no Algarve. Deixam-me participar no projecto até ao fim; mas depois tenho de ir ter com ela.

Dissera aquilo com o rosto a ferver, e só depois ergueu os olhos.

Brísida procurava interpretar as revelações. Ali estava a chave para os mal-entendidos daquele relacionamento. Havia então um obstáculo concreto, uma razão que o levara a comportar-se de tal forma. Ele solicitou-a:

— Não dizes nada? Eu sei que já te devia ter contado há que tempos.

— E… porque não contaste? — perguntou ela, com os olhos abertos, pregados no rapaz. Não parecia zangada. — Porquê esconder a verdade?

Os ouvidos de Bartolomeu zuniam. Porque não revelara antes o seu destino a Brísida? Com certeza não para se aproveitar dela, ou enganá-la. Sentia a cabeça zonza, o estômago embrulhar-se. Ela era uma rapariga bonita, mas ele não… e depois Fernão sempre a mandar-lhe bocas, deixara que aquela ficção se arrastasse, porque… nem sabia bem porquê. Ela era tão carnosa, tão insistente, era óbvio que esperava alguma acção da parte dele; era o que todos esperavam, mas… Além de que havia o casamento. Ou se calhar era ao contrário, a proibição é que refreava sentimentos que de outro modo teriam aflorado. Esfregou a testa: era tudo tão confuso, sentia-se emocionalmente esgotado.

— Tu querias estar comigo, se pudesses? Foi por isso que te foste embora hoje? — perguntou Brísida, com voz suave, julgando compreender por fim o seu dilema, o comportamento errático de meses. — Era por saberes que não podias?

Bartolomeu procurava ele mesmo uma lógica para as experiências da noite:

— Se eu pudesse, eu…

Brísida beijou-o sem o deixar terminar a frase. Um beijo sem pânico, sem pressas, mas urgente apesar disso, porque há muito estava latente.

Encostou a fronte à de Bartolomeu. Era um momento de infelicidade, viviam uma despedida. Não lhes estava destinado nenhum futuro, nada apagava isso. Mas ansiava por uma explicação daquelas, que desse sentido à história. O rapaz estava mesmo interessado nela; no entanto, havia um impedimento, não lhes era permitido ficarem juntos. A ironia quase a fez ceder ao choro, mas não queria arruinar aquele momento, o único momento de intimidade que teriam. Ao menos um encontro era-lhes devido.

De novo, beijou-o com paixão. Sentiu que ele se debatia, procurava resistir, e isso só o tornava mais nobre a seus olhos.

— Bartolomeu, tu nunca…? Pois não?

— Eu… Não, não podemos… — Repetia para si mesmo que não podia, não podia aproveitar-se da situação, não podia continuar com Brísida, num apartamento vazio. — Eu bebi tanto, é que…

— Shhh. Deixa… Eu já sei… — sussurrou-lhe a rapariga ao ouvido. Ela não bebera nada, e tomava aquela decisão em plena consciência. Devagar, enquanto desabotoava a camisa, pegou na mão dele e levou-a à altura do seu seio. — Eu já percebi, não te preocupes: é só esta noite. Partes-me o coração amanhã.

 

*

 

Acordara cedo, encharcado em suor. A cama não era muito espaçosa e a manta, excessiva. A seu lado, Brísida dormia, o corpo imóvel. Bartolomeu passou-lhe um dedo pelas costas nuas. Ainda tentou voltar a adormecer, pois sentia-se cansado, mas não conseguiu descontrair e, ao fim de algum tempo, desistiu.

Dera um passo em falso. Pelo menos, não iria piorar a situação.

Levantou-se, vestiu-se e achou por bem acordá-la para se despedir como deve ser.

— Não tens de ir já — disse-lhe Brísida.

— É melhor. Desculpa…

— Não, está tudo bem. Sabíamos que era assim.

Ficou sem saber se lhe devia dar um beijo ou não. Decidiu-se ela, beijou-o na face e desejou-lhe um bom domingo.

— Amanhã… — ia para dizer Bartolomeu.

— É um outro dia. Vemo-nos no Instituto — e Brísida sublinhou, para clarificar a situação: — Como colegas. Eu sei.

Bartolomeu atravessou a cidade pelos corredores desertos. Num domingo, àquela hora, ninguém estava a pé em Lisboa, o que lhe permitia avaliar a medida da sua solidão. Não tinha como expulsar do fundo de si aquela tristeza.

Passou a manhã em casa, a calcular o seu futuro.

Pelo meio-dia, dirigiu-se a casa dos pais. Sandro e Marisa, aprumados, aguardavam-no para o almoço. A mãe falou da festa, perguntou-lhe se se tinha divertido com os amigos. Bartolomeu costumava fazer um esforço para se mostrar expansivo, mas desta vez faltava-lhe o ânimo.

Na véspera, combinara por alto passar no Torel à tarde para se encontrar com Tiago, Fernão e Lisa, mas não teve vontade. Voltou para o apartamento de Marcello, tentou retomar a leitura do romance que o tutor lhe emprestara, mas cada página era composta por blocos estranhos que se recusavam a ser lidos. Passou as horas a rememorar os acontecimentos da véspera, numa mágoa indecisa. Já não era o mesmo, mas não tinha como incorporar aquela experiência no percurso de vida que tinham traçado para ele. Sentia-se tão estranho, ninguém o poderia compreender. E nem conseguia precisar o que era que lhe pesava tanto.

Comeu alguma coisa, sem apetite, e dormitou um pouco no sofá, às escuras. Queria aguardar Marcello, que regressaria ao fim da noite. O tutor chegou mais tarde do que o previsto, estafado da viagem.

— Os franceses obrigaram de parar a avioneta… — ia para começar a contar.

— Queria pedir-lhe desculpa — interrompeu o rapaz. — Pelo que lhe disse há dias, aquilo do Flávio… foi uma acusação injusta, e má.

— Eu sei, Bartolomeu, não faz mal. Não pensas mais nisso.

Conseguiria dormir um pouco melhor, tendo-se libertado ao menos daquela culpa.

 

4

Bartolomeu e Tiago no navioAo abrir os olhos, viu-se enfiado num cubículo apertado e escuro, quatro paredes ao alcance da sua mão, e faltava-lhe o ar. A luz que entrava pela fresta prometia uma saída: Bartolomeu palpou a maçaneta, e teve de empurrar com toda a força, pois a porta estava bloqueada. Quando esta enfim cedeu, deu dois passos rápidos para o exterior, enquanto protegia a vista da claridade azul que o cegava. Até onde os seus olhos alcançavam, o mar cintilava; estava a bordo de um navio. Debruçou-se na amurada, a tentar desfazer um nó de gravata que o sufocava. Em vão. Envergava um fato escuro, formal, absurdo para aquele calor. Tirou o casaco para arregaçar as mangas.

— Estás maluco? Não faças isso! — Brísida surgiu de lado nenhum, travou-lhe o gesto. Falava depressa, o queixo no ar, enquanto lhe ajeitava o colarinho: — Olha para ti, já estás todo desalinhado… Onde é que te meteste? Vai começar, não tarda nada.

Tal como ele, estava vestida a rigor.

— Vai começar o quê? — quis saber Bartolomeu, confuso.

— Não gozes comigo. — Ela nem sequer olhava para ele, como se a pergunta a humilhasse. — Está toda a gente à tua espera. Olha, aí vêm eles…

Fernão e Carola acorriam ao convés, com ar preocupado.

— O que é que se passa? Estás a acobardar-te? — perguntou Fernão.

— Ela já está lá dentro — corroborou Carola. — Até parece mal.

— Quem? A Elda? — Bartolomeu não compreendia nada.

— Exacto. — Fernão não conteve uma gargalhada: — A Elda é que é a noiva!

— Noiva!? — espantou-se Bartolomeu. Os outros não pareciam ter consciência de onde estavam. — Que história é essa? Não vêem que isto é o Rest.2?

— Vá lá, deixa-te de brincadeiras — repreendeu Carola. — Agora é que estás com hesitações? Tiveste mais que tempo para te habituares à ideia…

Bartolomeu passou os olhos de um para o outro. Estavam mesmo convictos do que diziam. E Elda surgiu do interior do navio, esbaforida, a gritar o seu nome:

— Despacha-te. A Sofia está a ter um ataque de nervos.

— A Sofia…? Ela está…? — Só então Bartolomeu compreendeu que se tratava do seu casamento. — Mas não percebem que é ridículo!? Já viram onde estamos?

— Agora deu-lhe para isto — explicou Carola a Elda, em voz baixa.

Fernão puxava-o pelo braço, e Bartolomeu desembaraçou-se com um grito, que deixou Carola e Elda de boca aberta. Brísida começou a falar sozinha, como endoidecida, foi sentar-se junto a uma porta. Ele teve vontade de ir ter com ela, agachar-se, dar-lhe uma explicação. Mas nesse momento outra pessoa entrou em cena.

Mas desta vez não é um sonho, pensou Bartolomeu. Não tinha dúvidas de que estavam numa ligação de interacção. E, no entanto, ali estava ele. Tiago. Contrariamente aos outros, não vinha vestido para uma cerimónia, mas caminhava com uns simples calções de banho. Bartolomeu afastou-se dos colegas, e seguiu-o até à proa.

— O que é que estás aqui a fazer? — e era como se o quisesse agredir. Sentia agora uma profunda aversão por aquele rapaz tolo, com quem perdera tanto tempo a discutir baboseiras na festa.

— Este barco… — Tiago parecia desnorteado por completo, como se sob o efeito de hipnose. — Tu… és o Bartolomeu, não és? Sabes onde estamos?

— No Rest.2. Como é que te conseguiste ligar? — perante o silêncio, Bartolomeu alçou a cabeça, como se esperasse uma resposta vinda do céu. — O Marcello…?

— Não me lembro de nada — o rapaz lançou-lhe um olhar tão angustiado que Bartolomeu sentiu as suas defesas caírem de uma só vez.

O sol escaldava. Tiago passou uma mão pelos cabelos, olhou para os outros, depois de novo para o rosto que reconhecia. E então Bartolomeu reparou que o colega trazia tatuado atrás do ombro um cavalo-marinho. Sem motivo, o pormenor inquietou-o; perguntou-se se seria real. Mas sabia que não devia pensar naquilo.

— Não tens calor com esse fato? — a voz de Tiago sumia-se. Não era o mesmo.

— Bartolomeu, então? — gritou Carola.

Sob fogo cruzado, Bartolomeu olhou para trás. Todos o miravam com incompreensão, sem se aperceberem de que a presença de Tiago na ligação constituía uma novidade. Engoliu em seco, estava a comportar-se também ele como se se ligasse pela primeira vez. É só o Rest.2, pensou. Não estava a ser razoável. O fato era necessário; e Sofia estava à sua espera. Um casamento ali era como um ensaio, não significava nada.

— Tenho de ir — murmurou.

— Não percebo…

Bartolomeu virou costas, deixando Tiago sozinho na proa, Fernão recebeu-o de volta com uma palmada nas costas, e todos suspiraram de alívio. O mar brilhava, tão perto de si, mas os colegas pressionaram-no para avançar. Quanto a Brísida, levantada do chão, decidira não os seguir: dirigiu-se para uma porta, rodou a maçaneta, e entrou.

 

*

 

Quando Brísida abriu a porta, a primeira coisa que notou foi um relógio de parede.

— Estás atrasadíssima! — sussurrou-lhe a voz de Carola. — Entra!

Era uma sala grande, cheia de carteiras individuais, onde rapazes e raparigas se afadigavam a completar testes. Brísida perguntou à colega:

— O que é isto? Estamos no liceu?

— Mas que pergunta! Não sabes que hoje é o dia da atribuição?

Ao fundo da sala, num estrado, os membros da comissão dialogavam com Elda. À distância, não se ouvia nada. Tinham de simular o dia fatídico?

— Já te chamaram — avisou Bartolomeu, — porque é que não chegaste a horas?

Fernão mandou-os calar, tentava ouvir o que respondia Elda. Brísida percebeu que os colegas pareciam convictos de que o momento vivido era autêntico. Outro jogo de personagens? Já estava farta de enganos, mas nem se deu ao trabalho de os contrariar.

— Eu vou ser médico. Parto para o Sul amanhã — anunciou Bartolomeu, inchado. Brísida acenou com a cabeça, como quem se deixa impressionar. — Eles também não se saíram mal. A Carola vai ser transmissora de competências.

— Professora — traduziu Carola, com um encolher de ombros. — São só nomes.

— Bem — Brísida alinhou no embuste. Olhou para Fernão. — E tu?

— Vou ser engenheiro, na Bóreas — declarou o rapaz, com orgulho. Brísida levou uma mão à boca, a tentar conter o riso, e ele ripostou com desprezo: — Achas-te muito esperta, não é? Já vais ver o que te reservam. Aposto que nem para auxiliar dás.

— É verdade que chegaste muito atrasada — lembrou Carola. — Agora já não sobra nada de jeito…

— Sabia lá que era hoje! — defendeu-se Brísida, como se tivesse de procurar desculpas. Mas era só o Rest.2.

Bartolomeu tocou-lhe no ombro: chegara a sua vez. Brísida avançou, disposta a apresentar-se à comissão, embora ciente de que era uma perda de tempo. No caminho, cruzou-se com Elda, que regressava acabrunhada, e não pôde deixar de sentir pena dela e de todos os outros jovens daquela sala, convictos do destino irrevogável que lhes era apresentado ao fim de uma breve conversa.

— Brísida Quife — anunciou, com à-vontade, perante a comissão.

— A senhora chega com atraso. Já a chamámos — assinalou um homem carrancudo, de orelhas tortas.

— Estava na casa de banho.

— Não é permitido o uso dos sanitários, sabe bem — declarou uma mulher de cabelo curto e óculos severos. — Não sei se a senhora é apta para o trabalho. No seu estado… Talvez dona de casa.

— Já nenhuma mulher é dona de casa e não tenho estado nenhum — contestou Brísida. Aquilo era sobre a repulsa? — Sou perfeitamente apta para o trabalho.

— Nós é que decidimos o que é mais adequado para si — decretou o terceiro elemento, um homem de barbas brancas. — Vamos lá ver. O que me pode dizer sobre Hermenegildo Guterres?

— Hermene… Não estou a par — Brísida ficou um pouco atrapalhada.

— Pode então elucidar-nos sobre as circunstâncias de tratamento do divertículo de Meckel? — lançou o primeiro avaliador, de orelhas tortas.

— Não sei do que está a falar — enervou-se Brísida. Virou-se para a assistência e deparou-se então com aqueles dois olhos assustados. Tiago estava entre eles, conseguira ligar-se. Brísida não reprimiu um gesto de reconhecimento: ele estava mesmo ali? Os avaliadores continuavam a falar, citavam direito romano, ela cansou-se daquilo:

— Eu trabalho na Bóreas, a minha área é o Rest. Quero ser engenheira.

— Isso está fora de questão — cortou o homem de barbas, que parecia presidir à comissão. — Esse lugar foi atribuído ao colega, que se mostrou meritório…

Brísida voltou-se, desamparada, para Fernão. Junto da porta, o rapaz abanava devagar a cabeça, com um sorriso cruel, e sugeriu:

— E que tal actriz? Já que ela sabe tanto sobre o Rest?

Os membros no estrado pareceram considerar a hipótese com seriedade. Brísida olhou furiosa para Fernão, que, sem se preocupar com ela, abriu a porta e saiu da sala.

 

*

 

A porta rangeu, e Fernão foi empurrado para dentro do aposento com um ímpeto que o fez cair ao chão. Soltou um queixume: magoara o braço direito. Ouviu o molho de chaves rodar atrás de si, olhou à sua volta, e notou as grades. Fora emprisionado.

O espaço que tinha à sua disposição era mínimo. Levantou-se com dificuldade, e aproximou o rosto das barras de ferro. Pensou em gritar, mas era inútil esfalfar-se. Tinha cada vez menos paciência para aquelas ligações de interacção, que nunca traziam nada de bom. Depois da vez precedente, já não suportava a ideia de ter de cumprir as histórias que outros construíam para o seu fantasma.

Um raio de sol penetrava pela janela, revelando a poeira no ar. Enquanto houvesse luz, pouco tinha a temer, mas passou-lhe pela cabeça a ideia de que, à noite, ratazanas poderiam aproveitar a escuridão para sair de entre as pedras, e estremeceu. Os roedores sempre o tinham enojado. Eram sobreviventes.

Uma porta bateu ao longe, distinguiu o som de passos. Dali a pouco surgiram os colegas, em bloco, a espreitarem por entre as grades.

— Digam-me que têm a chave.

Lia-se um asco visceral na atitude de Brísida, que cruzara os braços. Pelo rosto de Bartolomeu perpassavam perturbação e incredulidade enquanto Carola, com miradas fugidias, dava a entender sentir apenas desilusão, como se o culpasse por alguma coisa que não saberia identificar. E Elda, lívida, com uma expressão dolorida, apertava as mãos sem desviar os olhos dos seus, como se a sua piedade lhe pudesse servir de ajuda.

— Estão parvos ou quê? Quero sair daqui! — insistiu Fernão. E apostou na ficha que lhe parecia garantida— Elda… Sabes que estamos no Rest.2, não é?

— Eu… não, não sei nada, não posso ajudar… — gaguejou a rapariga.

— Não lhe respondas! — comandou Brísida. — Já viste do que ele é capaz.

— Eu não fiz nada, sua estúpida — defendeu-se Fernão, irado.

— Eu acho que ele… não sei se ele sabe… — ousou dizer Elda.

Brísida mantinha uma expressão arrogante, reservava-se o direito de o julgar. Fernão recordou a frase de um livro que a mãe lhe lia quando era rapaz novo, não se lembrava qual: «Numa cadeia eu hei-de ver-te morrer». E aquela mascarada pareceu-lhe um agouro sinistro.

Veio-lhe então um rumor indistinto da outra cela em frente. Esfregou os olhos diante do inesperado companheiro de infortúnio. Tiago!?

— Ei, és mesmo tu? Estás aqui? Ei, estás a ouvir?

— Vocês não param de saltar de um sítio para o outro — Tiago apertava a cabeça com as mãos, como se não conseguisse dar sentido ao que via. — E começa sempre tudo outra vez.

Fernão não compreendeu as palavras dele, os colegas não fizeram caso.

— Vou lá dizer-lhes que este outro acordou — decidiu-se Carola.

Passou de novo em frente a Fernão, de modo a deixar bem claro o seu desapontamento, antes de se dirigir para a porta.

 

*

 

Carola empurrou o pesado portal com cautela, constrangida pelo ambiente imponente. Reconhecera o pórtico vertical, os tectos altos, os vitrais. Embora não fosse católica, assistira a cerimónias no local. Ficava no bairro, a Igreja do Santo Condestável.

Optou por conservar-se junto à entrada, o mais circunspecta possível, enquanto o padre dizia a missa. Sentia as mãos geladas, os pés dormentes, lá fora era de noite. As paroquianas, embrulhadas em xailes negros, entoavam ladainhas sem fim. Ela própria vestia cores escuras. Era uma atmosfera pesada, os fiéis em grande número viciavam o ar e as emanações dos círios que queimavam a seu lado deixavam-na enjoada. Considerou a hipótese de se retirar discretamente, mas a experiência mostrava que não era sensato afastar-se dos colegas numa ligação de interacção. Por enquanto, ninguém à vista, mas deu uns quantos passos na ponta dos sapatos e, ao erguer o pescoço, identificou Elda ao fundo do corredor central.

Deu a volta para deslizar pela parede lateral.

A meio do trajecto, sentiu que a agarravam pelo pulso, e Brísida estreitou-a num abraço. Ela foi incapaz de protestar. Em menos de um segundo, a mão de Fernão também se lhe viera pousar no ombro.

— Como te sentes? — sussurrou o rapaz.

Carola abriu muito os olhos, como se precisasse de destrinçar as pestanas, e não ousou responder. Mais à frente, Bartolomeu, também ele de luto carregado, assistia ao sermão em posição recta. Libertou-se como pôde daqueles cuidados para ir ter com ele.

— Bartolomeu. O que é que…?

— Carola, eu… Tenho imensa pena — a voz do amigo embargou-se.

Ao ver-se presa daqueles braços quentes na sua nuca, sentiu a garganta apertar-se. Conhecia aqueles abraços de conforto. Algo se passava, ou pelo menos assim eles o supunham: não estavam conscientes da ilusão daquele mundo. Um pensamento negro toldou-a. Ao longe, de olhos pregados nela, identificou Tiago. Contudo, nem teve tempo de se perguntar o que fazia ele ali. Junto ao altar, encontrava-se um caixão aberto. A imagem fê-la soçobrar. Soltou um soluço e desviou a cara de imediato. O amigo passou-lhe o braço pelo ombro, num gesto encorajador.

Não conseguira vislumbrar o corpo, mas teve uma certeza inabalável.

— Óscar…

Recolheu-se contra o peito de Bartolomeu, a única pessoa em quem confiava por completo, e desabou num pranto. Depressa sentiu que não estavam sozinhos: Fernão e Brísida aproximavam-se para lhe trazer consolo por uma perda em que, na verdade, só eles acreditavam. Era estúpido chorar de forma tão sentida por um evento irreal, mas não controlava o corpo. Por momentos, submergiu a cabeça e viu Elda fazer-lhe um aceno calado, quase como se pedisse desculpa por existir. Achou estranho que não fosse ter com ela, mas a amiga atravessou o corredor, empurrou a porta e saiu daquele espaço.

 

*

 

Elda fez um esforço suplementar para impelir a tampa do módulo e alçar a mão para o vazio. De cada vez, era como se tornasse à terra depois de sepultada por engano. Deixou-se guiar pela metáfora e sorveu uma golfada de ar, mesmo se a sala de impulsão tinha tudo menos oxigénio limpo — e mesmo se, desta vez, nem cinco minutos deviam ter passado.

Os colegas ainda ocupavam os módulos à sua volta, sem nenhum gesto que denotasse o retorno à consciência. Teria sido só ela a não se conseguir ligar? Não havia sinal de Marcello, mas o tutor não os abandonaria na sala, ou pelo menos assim queria crer. O contacto dos pés no solo frio fê-la compreender. Não regressava de uma excursão infrutífera ao Rest.2; aquele era o Rest.2.

Apoiou-se ao módulo ao lado do seu e observou, pela tampa de vidro, as pálpebras cerradas de Bartolomeu. Podia imaginá-lo naquele momento imerso no mundo virtual, a nadar em paz; mas isso não faria sentido, pois o corpo que tinha diante de si era já um fantasma. Quantos mundos podiam derivar de um só? Percorreu as linhas puras do módulo, sem saber o que fazer. Aparentemente, tinha a sala para si. Mas quando o seu olhar passava pela grande mesa rectangular, apanhou um susto.

O coração batia-lhe enquanto se aproximava daquele vulto curvado sobre a superfície da mesa, com a cabeça enfiada entre os braços. Um nome saltava-lhe para a boca, mas hesitava em pronunciá-lo: era Flávio, mais uma vez?

— Ei…

Um rosto estremunhado respondeu à chamada, mas afinal pertencia a Tiago.

— Já sei o que vais dizer, nem te dês ao trabalho. «Estás aqui?» Estou.

Elda olhou bem para ele.

— Ainda bem. Achava que estava aqui sozinha — confessou, enquanto se sentava ao seu lado. Ele fixava-a com ar temeroso.

— Não percebo o que é «aqui». Está sempre tudo a mudar.

— A primeira vez que me liguei também foi confusa para mim…

— A primeira vez de quê? O que é ligar? Toda a gente diz que me consegui ligar.

— Porque estamos ligados ao Rest.2. Sabes, o mundo virtual? Daqui a pouco, vai acabar. Acordas num módulo como aqueles. Isto não te diz nada?

O rapaz abanou a cabeça. Parecia totalmente desamparado. Explicou-se:

— Não sei se vos conheço. Tenho assim uns flaches, mas tudo embrulhado. E nem sequer me lembro… — voltou a afundar a cabeça nos braços, a morder palavras.

— O quê? Diz. Podes falar. A gente conhece-se, não te preocupes.

— Nem sequer me lembro do meu nome!

— Tiago! Chamas-te Tiago.

— Tiago…?

— É o teu nome. Eu sou a Elda — e estendeu-lhe uma mão.

Quase a medo, ele apertou-lha.

— Podes explicar-me mais? Somos seis a trabalhar aqui, é? Falaste há pouco de um mundo virtual…

Elda deu as explicações possíveis perante um rapaz espantado, que ouvia o relato como ficção científica: um projecto, a morte de Flávio Hirpo, a ligação de Odeceixe, os efeitos do Rest.2. Ele mantinha-se atento, calmo, sem as provocações agressivas que cultivava no exterior. Na impossibilidade de recordar dados sobre a própria vida, fez-lhe perguntas em catadupa sobre a dela. Elda sentia sempre que não havia muito a dizer, mas daquela vez, por acaso, a sua narrativa era mais clara: a vida em Coimbra com a mãe, a presença de Cinira, os anos do liceu, a mudança para Lisboa. Aquele rapaz desmemoriado não constituía propriamente uma ameaça a seus olhos.

— E agora? Disseste que íamos acordar nos módulos. Voltamos para lá?

— Se quiseres. Não faz diferença.

Ela levantou-se, acompanhou-o até ao aparelho, ajudou-o a instalar-se, quase como se o aconchegasse na cama antes de uma noite de repouso. Fechada a tampa, regressou ao seu lugar. O que significava aquilo, agora ele era um deles? Estendida no módulo, olhou para a porta, como se alguém pudesse entrar e prestar esclarecimentos. Mas a forma mais rápida de os obter era provavelmente fechar os olhos, deixar-se adormecer.

 

5

Caíra o pano.

Naquela noite, tudo continuava em aberto. Bartolomeu retribuíra com um sorriso de boas maneiras o prato que Dara Jurado lhe tinha passado, para logo se recolher numa inquietação compassada pelo piano de Rachmaninoff. À sua frente, Carola incitou-o a começar, mas ele não sentia apetite. Os seus pensamentos oscilavam em permanência, navegavam da antologia de episódios vividos no mundo virtual para os seus dramas pessoais, que não encontravam escoamento. Aportavam enfim àquela imagem impressionante de Marcello ajoelhado junto ao módulo, a acudir em pânico a um Tiago catatónico. Para onde quer que se girasse, cólera e desgaste. Mas sabia que, àquela larga mesa de mogno, não se abordavam experiências do Instituto. Dara referia-se ainda à festa cíclica, e era penoso para ele recuar àquela noite, que desejava soterrar na memória, mas que, após quarenta e oito horas, continuava a persegui-lo.

Durante todo o dia, Brísida comportara-se como se nada tivesse acontecido, a sua atitude não traía a mínima emoção. Ele não era capaz.

— Já não os via há mais de um ano, nem sabia que agora tinham… — era Dara a puxar histórias a que Carola ia respondendo com monossílabos. Bartolomeu não quis incomodar, esticou o braço para agarrar o jarro de água. Brísida a pegar-lhe na mão, a guiá-lo enquanto abria a camisa. Fechou os olhos com força, entornou o recipiente.

— Ah! Desculpe… — e Dara levantou-se para ir buscar um pano que absorvesse a água versada na mesa de mogno. — Hoje não atino com nada.

— Não faz mal. Parece que vocês hoje tiveram um dia difícil — concedeu a senhora.

Havia semanas que Bartolomeu não ia jantar lá a casa, fora Carola quem insistira. Não lhes fazia bem ficarem sozinhos, e o tutor não voltaria para casa tão cedo. Mesmo se Marcello garantira que Tiago ia ficar bem, vê-lo a ser transportado para a ala hospitalar por homens de bata branca deixava todos agitados. Tiago, o rapaz que lhe apetecia culpar pelo desenlace daquela festa; mas Tiago não fizera nada. Alguma coisa estava errada era com ele próprio.

— É verdade, a Filomena disse que hoje ia fazer um bolo — lembrou Dara.

Carola levantou-se, pôs o casaco para ir chamar a vizinha. Olhou para o amigo, como a perguntar se ele a queria acompanhar, mas não obteve resposta.

Bartolomeu ficou a sós com a senhora.

— Mal tocaste no prato, Bartolomeu — notou ela.

— Dia difícil. Como a Dara disse há pouco.

Bartolomeu conhecia-a desde pequeno, fora sua professora de educação artística no grémio, e uma excelente professora, dava aulas que abriam mundos. Os miúdos adoravam-na, apesar da desconfiança de alguns pais. Dara nunca se ligara ao Rest, e corriam sempre histórias sobre os objectores em geral. Pensou de novo naquela cerimónia fajuta do navio. Se pudesse pedir objecção de casamento, como Dara fizera com o Rest…

— Dara, imagine que… — abrira a boca antes de saber o que queria dizer. — Se para mim fosse insuportável ligar-me ao Rest.2; enfim, não, insuportável não, mas uma coisa que eu por mim não faria, que não me dava a mínima vontade. As pessoas à espera que eu adorasse aquilo, até a sentirem inveja de mim, a incentivar-me, e eu a ter de fazer de conta, sabendo que não podiam compreender. Como se não querer ligar-se fosse impossível de admitir.

— Sim, estou a imaginar.

Então, qual era a pergunta? Não sabia. A verdade é que adorava ligar-se ao Rest.2, poder passar horas a nadar, no alto mar, longe de tudo. Bartolomeu ficou com cara de parvo, incapaz de desenvolver.

— Andas a pensar nisso? Em pedir objecção? — Bartolomeu fez que não com a cabeça, sem saber como sair daquela alhada. Dara pegou-lhe na mão, falou mais baixinho. — Se tens dúvidas, se quiseres falar sobre o assunto, estou aqui. Não é fácil, Bartolomeu, eu sei, é como as pessoas vivem, é o que toda a gente espera que tu faças. Vocês devem sentir tanta pressão.

O disco chegou ao fim, pôs-se a rodar em seco.

— Obrigado, Dara, mas não é isso. Aliás, não é nada.

Estava escrito na pedra: o quê? Não conseguia encontrar resposta, não conseguia atinar com a pergunta. E o olhar afiado de Dara, a tentar ler-lhe na alma, assustou-o.

— A sério, Dara, esqueça, estava a falar no ar. Hoje parece que não estou cá. Olhe, já aí vem a Carola.