06

PILOTO AUTOMÁTICO

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Elda
Bartolomeu
Carola
Fernão
Brísida
Tiago
Marcello

1

Elda na festa com os pais e convidados Nem sei como te hei-de agradecer. Foste a maior surpresa deste projecto — disse Fernão. Sentada à cabeceira do leito, Elda reprimiu um sorriso.

— Qualquer pessoa fazia o mesmo — respondeu ela. Ao terceiro dia de vigília junto do rapaz doente, sabia no seu íntimo que não era exactamente verdade. Quem mais se teria dedicado a ele de forma tão incondicional? Avançou a mão na direcção do seu ombro para retirar o termómetro, verificar se a febre baixara. Sem avisar, Fernão segurou-lhe o pulso, cravou nela um olhar doce e um pouco assustador.

— Ninguém fazia isto como tu. — O rapaz parecia recuperar forças. Ainda na véspera, nem conseguiria alçar o braço. — Estou a falar a sério. Fui um parvo. Estavas todo este tempo à minha frente e eu incapaz de te ver…

— Pára. Tens uma namorada. — Elda soltou a mão, voltou-lhe as costas e dirigiu-se à mesa-de-cabeceira para ligar o rádio, numa tentativa de desviar o rumo da conversa. «Smoke Gets in Your Eyes». Fernão tentou alçar-se de rompante, mas uma tontura tolheu-lhe os movimentos. Ela acorreu à cama, consternada, amparou-o com os dedos frios, a que ele se agarrou, enquanto disparava palavras:

— Onde é que ela está? Mudou tudo, não vês? Quê, devo fazer de conta que estes dias não aconteceram? Que entre nós não se passou nada? Ou tu… — no rosto do rapaz imprimiu-se um súbito receio — … ou para ti não significa nada?

— Oh, Fernão, eu… Tu és a única pessoa que — e, perante a ideia de o magoar, o medo do ridículo desaparecia, faltava-lhe o fôlego: — Eu não precisava de mais nada. Longe disto, longe deles. Se tu fosses livre...

— Ela não conta. Não percebes? És só tu. — Fernão arquejava, os olhos luziam com febre, num desvario que a podia pôr levemente em risco. Pediu num sussurro: — Fecha os olhos.

Elda acedeu, o coração a bater desenfreado. Sentiu o rosto dele aproximar-se. Aguardava e temia aquele instante há tanto tempo.

Mas, nesse preciso momento, terminou a fantasia. Elda acordou no módulo da sala de impulsão, com uma ligeira náusea, como por vezes lhe acontecia. À sua direita, Bartolomeu exibia o sorriso de plenitude com que reemergia do Rest.2. Brísida, como sempre, fora a primeira a pôr-se de pé, já falava com Marcello. Mais ao fundo, Fernão também esticava as pernas, trocava duas palavras com Carola; não passaria pela cabeça do rapaz que ela o fazia co-protagonista daquelas histórias imbecis.

Elda tardava a levantar-se, aquele movimento exterior não lhe dizia respeito. Os seus ritmos eram outros. Calculava quanto tempo ainda faltava para se ver à noite na sua cama, apagar a luz do candeeiro, e recomeçar a ilusão. Fazia do Rest.2 uma extensão desse devaneio entre o sonho e a vigília, uma noite que extravasava pelo dia. As horas de sobra custavam a passar, e vivia-as num estado de exaustão, como uma espécie de batalha diária. Eram lentos, os seus dias.

E não percebia o que fazia ali.

— Hoje não queres ir para casa? — era Tiago, especado, com um olhar de gozo.

Era tão raro que ele abrisse a boca que chamou a atenção de todos. Marcello dirigiu-lhe um sorriso condescendente. Como sempre, ela não existia.

— Estava distraída. — E ergueu-se, envergonhada.

Pegou nas suas coisas, foi a primeira a sair da sala. Só queria aqueles poucos minutos de solidão que lhe pertenciam entre o trabalho e a casa.

 

*

 

Mas nem cinco minutos foram. Quando o elevador se abriu, Elda deparou-se com os pais no átrio do Instituto. Sem pensar, pressionou o botão que fechava as portas de novo, já eles vinham na sua direcção. Arrependeu-se logo, receosa das consequências, e reverteu a acção.

— Não percebo como é que isto funciona.

— Isto é que é uma surpresa, hã? — Júlia nem fez caso. Abriu as mãos de espanto: — Olha, que vista bonita vocês têm aqui! Não nos tinhas dito nada.

— Querias-te esgueirar, era? — Albano arrastava a voz com aquela ponta de sadismo que Elda aprendera a reconhecer em poucas semanas. — Não, minha menina, não. Hoje vamos falar com o tutor. A ver como te portas.

— Com o…? Eu nem sei se ele cá está — mentiu estupidamente, enquanto avançava pelo átrio. A perspectiva de um encontro entre os pais e Marcello aterrorizava-a. — Outro dia.

— Acho que podes bem apresentar os teus pais ao senhor, não é? — Júlia soergueu as sobrancelhas, sinal de que não admitia discussão. — Olha, será que nos permitiam fazer uma visita às instalações? O teu mentor podia dar uma palavrinha…

— Para a próxima, vá lá. Estou cansadíssima, isto hoje foi intenso.

Intenso? — riu-se o pai. — Ah, foi? Foi intenso? Ó Júlia, estás a ouvi-la? Que foi intenso… Já vamos perguntar ao tutor que experiências tão intensas são essas… Olha… olha para ela, já a ficar amuada.

Elda sentiu-se mal ao ouvir de novo o sinal do elevador. O pai agarrara-lhe um braço, a indicar que não havia escapatória. Quando as portas se abriram, ouviu-o murmurar-lhe à orelha:

— Ena pá! Aqui também empregam pretos?

Fechou os olhos com força. Brísida era a primeira a sair, mas atrás dela vinham todos os outros impulsores: nunca acontecia, e logo naquele dia subiam todos juntos. O pai desfiava palavras desconexas, para comentar à vez o desempenho da mulher e a atitude dos jovens. Elda já lhe conhecia a mania.

— Com que então, intenso?... Sim, senhor. Ena pá, que matulão! Olha, a tua mãe já começa. Tudo fantástico e tal. E aquela pintalgada?

— Eldinha, então? Não apresentas os pais aos teus amigos? — e Júlia foi cumprimentando os jovens num tom airoso, enquanto a filha olhava para o chão. — É a Brísida, não é? Como correm estes trabalhos? O Bartolomeu… e este deve ser o Fernão… A Elda tem-nos dito que estão todos muito contentes, que são muito amigos. Está tudo bem, a fazer progressos? Tu deves ser a Carol, acertei? Da festa de aniversário, pois. Agora é diferente do liceu, não é? Têm de se esforçar um poucochinho mais, pois é?

A mãe intervalava com risinhos aquelas frases cantadas, dirigidas a todos e a nenhum, enquanto o pai prosseguia o fluxo ininterrupto, que ela se esforçava por ignorar. Mas algumas frases doíam: «…a preta é assanhada, …o maneta é um bocado bruto.»

Foi quando a porta do elevador se voltou a abrir para trazer Marcello, um pouco perplexo, para junto do grupo. Bartolomeu indicou-o como sendo o tutor; Júlia agitou-se; Albano soltou a filha para ir estender a mão proeminente ao homem.

— Albano Visco — apresentou-se, já composto. — Desculpe aparecermos assim. Queria ter avisado, mas o trabalho... sabe como é.

A facilidade com que conseguia mudar de registo espantava sempre Elda.

— Sou Júlia, a mãe da Elda. O meu marido trabalha na Energia Nacional. É um grande prazer conhecer por fim o mentor do projecto…

— Eu… Marcello Galvano, muito piazer… Ah, são os pais de Elda!

— Estes jovens têm estado a contar-nos que o projecto tem corrido muito bem, que estão todos encantados… A Elda está feliz por pertencer a esta comunidade. Não estás, Elda? Como imagina, ela está desejosa de poder participar de facto no projecto.

Marcello pareceu intrigado com a observação, e Elda temeu uma catástrofe, mas o pai não lhe deixou o tempo de reagir.

— Apesar de tudo, acha que a rapariga se safa? — e Albano erguia a voz para a filha ouvir. — Ou será demasiado… intenso?

— Se safa? — Marcello estava um pouco desorientado, à sua maneira. De nada lhe valia olhar para Elda, que quase se virara de costas para eles. — Sim. Beníssimo. Molto bem. Mas posso ajudar com alguma coisa?

— Vinha pedir-lhe se dava dispensa à rapariga no sábado à tarde. Já que por enquanto não precisam dela…

É agora, pensou Elda. Aquela frase não podia passar despercebida.

— É o nosso casamento… segundas núpcias… — Júlia parecia comprometida e ao mesmo tempo embevecida com a explicação. — Está prevista uma cerimónia, e a Elda gostava muito de assistir. Como madrinha, teria de estar presente…

— Madrinha… quer dizer, faz a testemunha? Estou a ver… Sim, penso que é possível. Sábado à tarde, é isso?

Júlia prodigou-se em agradecimentos, enquanto Albano mantinha aquele registo gozão que aos estranhos parecia simpático. Ouviu-o alçar a voz:

— Pois é, ela é um bocado atarantada… Estava com medo que fizéssemos má figura… Mas vês, Elda, que nos estamos a dar todos beníssimo! Molto bene!

Elda apertava as mãos suadas. Tudo lhe era insuportável.

— Na quinta-feira… o senhor estaria livre? — interveio então Júlia. — Organizamos uma reunião de amigos, teríamos todo o gosto se pudesse vir!

— Eu? — Marcello atrapalhou-se: — Não sei, acha que…

— É um prazer para nós. Fica combinado. A Elda depois dá-lhe as indicações.

Os colegas começavam a dispersar, agora que a conversa não lhes dizia respeito. Que todos se fossem só embora, sem lhe dirigirem a palavra, era o mais fervente desejo de Elda. Muito vermelha, apercebia os vultos que se dirigiam para o tapete móvel. Um deles era Tiago, que se mantivera afastado durante toda a sequência. Passou junto a ela sem se manifestar, quase de raspão, mas Elda juraria ter ouvido a mesma frase de pouco antes: «Hoje não queres ir para casa?»

 

2

— Não, eu? Nada, não tem importância, é que… às vezes… — Elda ainda tentava derivar, mas Carola deu mostras de impacientar-se. Encontravam-se sozinhas na sala de impulsão, e havia minutos que a colega a pressionava. — Não é nada. Às vezes sinto-me farta disto… de tudo.

— Mas… aconteceu alguma coisa? Estás a falar do quê, em concreto?

Ora, em concreto, não estava a falar de nada. Elda não saberia dizer, taxativamente, «passa-se isto»: nunca se passava nada. A vida dela era aquela fuga permanente, de um perigo para outro, à procura de um quarto escuro onde se recolher — para, de novo e enfim em paz, com o orgulho triste de ter escapado ilesa, se sentir miserável. Construía o seu casulo com determinação, e era só uma teia de aranha, mas território seu, inviolável. Às vezes, porém, calhava um abano daqueles, um firme «não» que se impunha contra a sua vontade, e então, ao fim de momentos de incredulidade e negação, era forçada a reconhecer-se vencida.

Havia uma barreira de incompreensão que a distanciava da realidade; mas a realidade convocava-a, exigia dela certificados que não possuía, uma língua que não sabia falar. Os pais eram a prova desse fracasso de comunicação. Ah, não poder sequer expressar até que ponto o seu quadro familiar a incapacitava, não haver palavras que traduzissem um quotidiano que parecia anódino mas era na verdade avassalador. Um dos seus motivos de angústia era essa ausência, a sensação de incredulidade que vinha cobrir os momentos de opressão e quase os negava; mas nem de tal falta tinha consciência.

— Não estou a falar de nada. Esquece.

— Tem que ver com a tua irmã? — insistiu Carola, e a referência fez gelar Elda. Outra vez aquela mentira. E se agarrasse a oportunidade, esclarecesse naquele momento que se gerara um mal-entendido, que não sossegava a pensar nisso?

Mas Carola encolhera os ombros, a deixar patente que ela era impossível. E de qualquer modo, Bartolomeu acabara de chegar, abeirava-se dela.

— Nem adivinhas o que o Marcello me propôs ontem… Olá, Elda — um sorriso rápido, cordato. — Vais adorar…

— O quê, não digas… Aulas de latim?

Elda ainda conservava o sorriso fixo na cara, mas já não estava a ouvir. A sua função naquele trio era abanar a cabeça. Quando Bartolomeu estava nas paragens, Carola relegava a presença dela de imediato para segundo plano. E o rapaz era sempre educado com ela, sempre gentil, mas era óbvio que não encontrava o que lhe dizer. De resto, quem tinha alguma coisa para lhe dizer? Já nem se lembrava de quando Brísida a convidara para sair — havia duas semanas, talvez? Que insensatez. Desde então, a colega não voltara a dirigir-lhe mais do que cumprimentos distantes. Quanto a Fernão… era evidente que, aos olhos de Fernão, ela nem sequer existia.

— … como dizia a Lisa — concluía, entre risos, Carola.

Elda tentou retomar o fio. Quanto tempo estivera ausente?

— Tu ainda não a conheces, pois não? — perguntou Bartolomeu, ao ver que ela despertava. — Porque é que não vens connosco amanhã à noite? É a noite do meio.

— É a… Ah, no Torel? Mas não sei, a que horas é?

— Tens de falar com os teus pais — opinou Carola. — Ainda por cima, agora que eles… Quer dizer, para participares na festa do casamento tudo bem, e ainda vais ter de levar com o Marcello, mas não tens direito a sair com os teus amigos uma vez que seja?

E se fosse possível? Imaginou-se a dizer as palavras: «…com os meus amigos». Murmurou um som indistinto, que os colegas tomaram por afirmativo.

— Então? — cumprimentou Fernão, depositando o casaco na mesa.

— A Elda vem connosco amanhã — comunicou Bartolomeu.

Fernão anuiu no ar, sem olhar para ela: nada contra. Elda assumiu a hipótese como um dado adquirido. A semana acelerava.

 

*

 

— Vens comigo à casa de banho? — pediu Lisa.

Nem Brísida nem Carola se lembrariam de lhe propor tal coisa, e mesmo ela própria nunca compreendera aquele hábito, mas claro que não lhe passaria pela cabeça declinar o convite. Levantou-se da mesa, sem mais; tantas vezes usava o silêncio como resposta.

— Estavas a ouvir aquele grupinho de pedantes ao nosso lado? «A resiliência é o valor do século.» Não há pachorra… É o problema deste sítio. E à quarta ainda é pior. Gostava de saber quem é que inventou esta coisa da noite do meio. É mesmo preciso lembrarem-nos que ainda faltam três dias de trabalho?

— Ah! Eu achava que era… — e Elda interrompeu o que ia a dizer, com medo de parecer burra.

— O quê? Achavas que era o quê? — Tinham sido obrigadas a parar porque três tontas se estavam a rir à porta, aos guinchos. Lisa entrou no espírito, e abriu passagem com uma mão decidida, enquanto mimetizava a voz de uma: — Ah, ah. Demais! Deixem lá entrar, vá. Desculpa, Elda, estavas a dizer? Achavas o quê?

Na casa de banho, em frente a um espelho deformado, várias raparigas ajustavam vestidos caros, compunham a maquilhagem, comparavam-se. Elda sussurrou:

 — Achava que se chamava assim por à quarta só haver gente do «meio». Quer dizer, de um certo «meio»… Vês?

Lisa abriu os olhos como se tivesse recebido uma iluminação:

— É mesmo isso, é uma mensagem subliminar. Mas tu és um génio!

Elda nem percebia ao certo se aquilo era humor ou uma análise séria, mas alinhou. Com Lisa, as duas coisas não tinham de ser incompatíveis. Elda bichanou:

— Olha para o espelho, todo amolgado. Elas mal se podem ver.

— Tens razão. Coitadas, ainda ficam com o ego às mossas!

Riram-se as duas ainda mais por tentarem conter o riso, enquanto as outras lhes lançavam olhares enojados.

Elda passara tanto tempo a fantasiar uma saída com os colegas, a conjecturar o famoso Torel. Convencer a mãe não fora imediato, mas também não representara a dificuldade que esperava; os argumentos com que Carola a instruíra eram razoáveis aos olhos de Júlia, e a mãe andava tão absorta na organização das festividades que praticamente lhe dera a permissão sem reflectir. Chegara ao centro de convívio atemorizada, à espera de uma reviravolta na sua vida. Afinal, as dinâmicas eram as mesmas do Instituto: Bartolomeu afável e um pouco desatento, Brísida com a sua atitude distante, Carola que ficara logo aborrecida por ela lhe ter dito que estava bonita. O Torel era mais pequeno do que pensava, e não lhe parecia assim tão incrível, apesar da vista. Mas aquela noite trazia uma revelação: havia vida além do Instituto. Trocara meia dúzia de palavras com estranhos, amigos de Bartolomeu e Carola, e passara meia hora a conversar com Lisa, de quem já viera pronta para não gostar, e que, de todos, parecia ser a única que olhava para ela com olhos de ver. E surgiu-lhe então uma dúvida complicada: caso os seus colegas tivessem sido outros, a sua participação no projecto seria diferente? Ou a questão não era essa? Talvez o seu problema fosse aquela necessidade de delimitar o território, de se restringir ao que achava que queria. Porque, reflectindo bem, o que mudava naquele contexto era a sua disponibilidade para ir em sentido contrário, abrir-se ao que era novo.

Os dedos delicados de Lisa entremeavam-se agora nos fios do seu cabelo.

— O teu cabelo é tão bonito — Elda corou. A voz da outra era quente e pausada, caucionava a intimidade nascente. — Tens mesmo sorte.

— Eu gostava de o ter assim liso, como o teu — mentiu Elda; é que Lisa tornava a mentira verdadeira.

Demoraram mais tempo a regressar. O volume da música tinha subido, e um pouco por todo o lado as pessoas ocupavam o espaço disponível a dançar. Lisa pegou na mão de Elda e forjou um atalho, de novo. Perto da mesa, tropeçaram em Brísida, que conduzia Bartolomeu para o centro da pista. Por um segundo, o olhar do rapaz cruzou-se com o de Elda, comunicando-lhe uma inquietude indecifrável. Mas Lisa disse qualquer coisa engraçada, ele assumiu logo um semblante ligeiro.

Entretanto, Fernão levantara-se e aproximara-se deles. Com uma careta satisfeita, estreitou Lisa nos braços, numa afirmação de posse, e a namorada voltou-se para ele, enlaçou-o, pôs-se logo a dançar. Elda fez de conta que estava interessada nas letras do póster colorido da parede. Sentia-se como uma bola de ténis lançada contra a rede, que alguém esquecera de varrer do campo. Carola apareceu pouco depois. Na escuridão, jogos de luzes revelavam por vezes o seu rosto, mas, quando Elda olhava para ela, a colega só lhe retribuía uma espécie de impaciência irritada.

 

3

Nem sequer sabia da existência de espaços assim em Lisboa, equipados para receber, disponíveis para pessoas bem relacionadas. O apartamento ficava algures fora da cidade murada. Elda não saberia dizer onde, fora conduzida. Fora conduzida das duas vezes. A primeira, dias antes, a acompanhar a mãe, que desejava avaliar o local e deixar indicações para a disposição das mesas; a segunda, naquela noite, para a festa. 

Na altura da visita, Elda formara uma boa imagem mental do espaço: por norma, conhecer os lugares com antecedência tranquilizava-a. A sala da recepção parecera-lhe então enorme, mas o aparato disposto para a ocasião reduzia-a em considerável medida. Além de que havia muito mais convivas do que estava à espera. Essa era, aliás, a boa notícia: os pais andavam ocupados a entreter e deslumbrar, e ela gozava de relativa margem para vagar pelo perímetro.

Mas não estava a salvo de armadilhas.

— Elda, anda cá ouvir o senhor Galvano — chamou-a a mãe, e sentiu-se gelar. Marcello integrava agora uma roda que se formara em torno do pai.

Praticamente só cumprimentara o tutor à chegada.

— Eu mesmo não sei dizer… Não é sujeito que domino — atrapalhava-se Marcello. O director da companhia do pai solicitara a sua opinião sobre a chamada «solução energética portuguesa».

— Mas que diabo — insistiu o director. — Sendo a Itália o país que é…

Ter intimidade com um responsável da Bóreas fazia figura; mas Marcello não estava à altura das expectativas, e isso até Elda podia ver. Titubeava, desconhecia os nomes de que se falavam, mostrava estar a milhas das questões que os interessavam.

— O senhor Galvano está mais a par das tecnologias do futuro — sugeriu Júlia, num esforço diplomático.

— Então diga lá. Essa coisa dos telefones móveis, o que pensa? Tem futuro?

— Falam isso, não é?

Era como uma oral mal respondida, e num português insuficiente.

— Pois. Lá nas Itálias parece que falam isso, parece — atirou Albano, e piscou o olho aos colegas. Elda previra o que estava a acontecer: aos poucos, o pai ia convertendo a deferência num escárnio discreto, ou nem sequer tão discreto. Sabia o que significa ficar na berlinda com ele: piadas, subentendidos, pequenas humilhações.

Sentiu pena de Marcello, mas chegou a pensar que estava salva, visto que o interesse dos pais pelo convidado esmorecia. Todavia, assim que o director da companhia se ausentou, o momento por ela tão temido aconteceu. Albano perguntou de chofre:

— Mas ó Marcello, diga lá, quando é que aqui a rapariga consegue participar nessa brincadeira do Rest?

— Participar à brincadeira? Não comprendo… Qual é problema?

— Ouça, eu percebo que quer ajudar. Mas se um elemento demonstra que não funciona numa equipa, não adianta insistir: tem de ser retirado. Caramba, não lhe vou eu ensinar isto! Se ao fim deste tempo todo ela ainda não conseguiu ligar-se ao tal módulo, paciência, adeus. Alguma coisa lhe arranjam, uma atribuição qualquer.

Elda fechou os olhos antes que o tutor pudesse solicitar a sua intervenção, pronta para ser desmascarada. Estupidez não ter antecipado uma via de saída.

— Não, não se preocupa — garantiu Marcello, e a sua voz nunca se mostrara tão confiante ao longo daquela noite. — Há pequenos problemas assim, é normal. O sistema faz capricho, mas precisa dela. Elda vai conseguir ligar-se, máximo uma semana mais.

 

*

 

— Desculpe, posso deixar o copo nesta mesa …? É que… não sei se…

O jovem empregado a quem se dirigira endireitou-se, olhou para ela, e Elda ficou com a frase pendurada. Um clássico.

— Não, não, lamento. Tem de o ir lavar directamente à cozinha — indicou ele.

Elda ficou escarlate; respondeu depressa, muito atrapalhada:

— Ah, peço desculpa. Não sabia. Onde é que…?

O rapaz soltou uma gargalhada, e por um instante ela achou que estava em apuros. Mas era um riso aberto, sem troça. Ele tinha uma expressão generosa, e uma fileira de dentes encavalitados que não tentava esconder.

— Desculpe, não resisti — Era só uma piada, ele fizera uma piada que ela não percebera logo. Elda riu-se, procurou mostrar-se à vontade, mas continuou com o copo na mão.

— É que nunca sei o que fazer nestes sítios — avançou ela, em voz baixa, com uma audácia pouco comum. Pagava a graça do rapaz com uma confissão.

— Posso? — O rapaz pegou no copo, colocou-o numa bandeja já bem abastecida. — Assim, já ficas melhor; fica melhor, desculpe.

— Pode tratar-me por tu — concordou ela, esquecida da sua posição na festa.

— Aí está uma frase que nunca se deve dizer. «Podes tratar-me por tu» é que é.

— Está bem. Podes tratar-me por tu.

— Na verdade, não posso. Tu és a filha do casal. Sei muito bem, escusas de negar, vi-te há bocado no brinde. Seria contra a etiqueta. A tua mãe nunca te falou da etiqueta?

Elda fez uma expressão reveladora. Não lhe falava de outra coisa.

Uma daquelas senhoras de penteados indescritíveis passou perto deles, para deixar a taça de champanhe na bandeja com um gesto despendido, e pegar logo noutra. Elda disfarçou, fingiu que escolhia uma sobremesa por entre os cartões que a mãe se esmerara a desenhar, numa caligrafia cheia de arabescos. Quando o perigo se afastou, o rapaz sussurrou:

— Vês? Aquela senhora sabe que não se fala aos empregados sem necessidade.

— Não tenho emenda — constatou Elda. Bebera um copo e meio de ponche, a resposta vinha-lhe mais fácil do que de costume. — É que eu estou do lado errado da festa.

Riram-se os dois. Mas, nesse momento, ela identificou Marcello, que passava ao longe, sozinho, e virou as costas para não ser vista.

— Estamos em apuros? — perguntou o rapaz, com um tom de voz menos gozão.

— Não, o pior já passou. Até acho que estou a ser ingrata.

Mas, então, uma mulher de óculos e lábios roxos, com ar de gerente, surgiu ao fundo da sala, chamou pelo empregado com voz autoritária:

 — Zé Pedro!

Ele endireitou-se, acorreu, a bandeja cheia como desculpa para o atraso.

Elda ainda aguardou um pouco, depois pôs-se a circular. À meia-luz, com algum talento, podia atravessar a superfície de uma ponta à outra, praticamente invisível por entre os convivas. Por vezes, ao longe, voltava a ver o empregado; conseguia simular um ar muito compenetrado, e distribuía acenos de cabeça. Ela regressou algumas vezes ao ponto de encontro junto às sobremesas, mas a noite já ia avançada e não se voltou a cruzar com o Zé Pedro. Ainda assim, aquela breve conversa viria a representar para ela, durante bastante tempo, um dos pontos mais altos da sua vida em Lisboa.

 

*

 

Do terraço ouvia-se o som das ondas, mas não dava para ver o mar. Aliás, não dava para ver nada, era um espaço aberto para a imensidão da noite. Enquanto apoiava os cotovelos finos à grade, Elda perguntava-se que manutenção merecia aquele prédio. Se a estrutura cedesse, nada a impediria de cair, e sempre eram cinco andares.

Mas o som de passos fê-la perceber que não seria daquela vez.

— É horrível — Marcello veio colocar-se a seu lado, com uma ruga de incómodo na testa. — Não se pode!

— Eu sei. De cada vez é isto.

Os colegas do pai tinham começado com os fados de Coimbra.

— Não sei quê «amor estudante». Um martírio.

— E ainda não ouviu a da «mulher gorda» nem a da sebenta…

Marcello riu-se sem entender, não era preciso. Por momentos, Elda sentiu que ele se ia referir a outras torturas, aludir aos golpes baixos que sofrera da parte do pai dela naquela noite, pelo menos reconhecer a situação. Mas supunha que os homens não se queixavam uns dos outros. E de repente ele perguntou, à queima-roupa:

— Desde o início, mentiste a eles?

Elda suspirou profundamente. Apesar de tudo, devia a verdade ao tutor:

— Usei a história do Tiago. Como se fosse eu. Não me consigo ligar ao Rest.2.

— Mas porquê? Qual é sentido disso?

Elda não respondeu. Estar ali lado a lado com o tutor, a olhar para a escuridão da noite, era inusitado. Ao longe ressoaram palmas, gritos; já iam no quarto ou quinto fado.

— Não te percebo — admitiu Marcello.

— Ninguém percebe.

— Mas explicas, então…

— Não consigo. Sinto-me… Não dá para explicar.

Três meses a fingir que não se conseguia ligar, que passava os dias no Instituto sem fazer nada. Voltou a pensar na conversa com o Zé Pedro, poucas horas antes. Porquê? E vinha-lhe uma vontade de que as coisas fossem diferentes, de que pudesse cancelar o mundo em que vivia, as coordenadas que era incapaz de seguir, e o seu próprio temperamento. Marcello insistiu:

— É que não comprendo a intenção. Que diferença faz, dizer que não te ligas?

— Se não me ligo, não há história. Não tenho de dar nada.

— E é disso que precisas? Nada? Falas!

— Sim, é disso mesmo que eu preciso: nada, zero. Não pode compreender… Eu não pedi isto. Quando veio ter comigo a Coimbra, falar do projecto: na altura não percebi, cheguei a pensar que alguma coisa podia mudar. Mas aqui é pior.

— Pior? Mas é o Rest.2? Dize, posso ajudar…

— Não, é só… Isto, todos os dias o vazio. — Da escadaria vinham sons de guitarra, alguém entoava em crescendo «E aprende-se a dizer saudade». Elda sentiu vontade de gritar, quase de rebelar-se. — O Marcello lembra-se quando disse lá em Coimbra que… que me ia proteger? A mim, ao Flávio, lembra-se? Sem saber nada de mim, da minha vida? Não pode proteger-me. Eu não aprendo as regras, sinto-me sempre… fora. O Rest.2 não muda nada: tinha de ser mesmo outro mundo, percebe?

Libertara-se daquela quantidade de palavras, tão extensa para os seus padrões, sem parar para pensar. Marcello não respondeu, mas pôs-lhe só a mão no ombro, e aquilo deixou à mostra o absurdo da situação. Onde estava com a cabeça? Desde que ela chegara à capital, o tutor não fora mais do que um estranho, um instrutor técnico. A sua presença no jantar era um mero mal-entendido, não havia que confundir águas.

— Deixe lá o que eu disse, por favor. Tenho de voltar lá para dentro.

Arredou-se e avançou para as escadas, desejosa de cancelar o episódio vivido. Mas a verdade é que se sentira próxima daquele homem, que nem conseguia bem conceber como «um homem» — e estava consciente de que ele a salvara horas antes. Parecia tão inalcançável na solidão do terraço. Elda disse ainda, antes de desaparecer:

— O que fez por mim esta noite… não vou esquecer. Obrigada.

 

4

Elda, Bartolomeu e Carola no apartamento lisboeta num 2017 alternativoTinham-na mergulhado numa caixa de som, aquela música não se assemelhava a nada que conhecesse: sons metálicos, cordas, uma voz pungente que vinha de outro mundo. E era como se lhe tivessem dado corda, porque Elda continuava a caminhar ao longo da calçada sem comandar o corpo aquecido pelo sol. Não escolhia nada: ia deixando para trás uma cidade de prédios renovados, expositores de lojas, autocarros cor de laranja, restaurantes com empregados à porta; e a música sobrepunha-se sempre, por todo o lado, a todos os ruídos. Queria desviar a cara e não podia, virar-se para trás e não podia: o corpo não obedecia, navegava em rota livre, piloto automático.

A dada altura meteu-se pela estrada e um carro raspou junto a si, o condutor endereçou-lhe gestos irritados, mas ela prosseguiu sem se incomodar. Tinha a liberdade de avançar, mas, visto que não controlava nada, não era realmente livre — como um autómato a quem tivesse sido emprestada consciência alheia. A canção chegava ao fim e repetia do início, a mesma voz em inglês, as mesmas palavras, «looking like standing stones».

Estava numa ligação de interacção, não duvidava, mas não havia outros impulsores à vista, e foi sozinha que entrou num café, a limpar o rosto suado do calor. De repente, quando a senhora se aproximou do balcão, Elda levou as mãos aos ouvidos e a música desapareceu.

— Uma coca-cola, por favor — pediu, com uma voz segura que não reconheceu.

E pedir uma coca-cola nunca lhe passaria pela cabeça, como de facto não passou.

Os seus olhos avistavam sem se deter um televisor a cores ao fundo da sala, ela tirou duas moedas do bolso e pagou, obrigada, boa tarde. Voltou a enfiar nas orelhas o que percebia agora tratar-se de um fio, e escorregou o dedo pelo ecrã de um aparelho minúsculo, a mesma música outra vez.

Agora percebia: não era na cidade que tocava, mas apenas na sua cabeça, possuía talvez um aparelho para controlar a mente, que cabia no bolso. O seu corpo pôs-se a caminho, de novo sem atender à sua vontade, enquanto bebia uns goles do refrigerante que picava a garganta. Esgueirou-se por um arco, subiu umas escadas ao fresco da sombra, percebeu que procurava um número na rua até dar com o 15 esquinado de um prédio verde, fosse o que fosse que procurava era ali.

Apertou a campainha do quinto andar, e ouviu um grito vindo de cima:

— Elda, és tu?— Levantou a cabeça, «looking like standing stones» de novo, sentiu que lhe nascia um sorriso, acenou para Bartolomeu.

— Abre. Vou subir — anunciou, e empurrou a porta assim que esta estremeceu.

Dez passos em frente, um botão, o elevador, e ali dentro, depois de seleccionar o piso pretendido, Elda teve a possibilidade de se observar enfim ao espelho. Era mesmo ela. Para se apreender, aproveitou os gestos daquela sósia, que compôs o cabelo, ajeitou a blusa, terminou com uma careta, como se a provocasse. E concluiu que nem era bem uma sósia, apenas ela mesma noutra existência; o mesmo corpo, outra atitude. O seu susto não se reflectia; e nem a vontade de sorrir chegou ao espelho.

Ao chegar ao quinto andar, retirou os auscultadores e a música cessou enfim. Bartolomeu abriu a porta do elevador, girou a cabeça. Tinha novo corte de cabelo: um dos lados quase à máquina zero enquanto uma onda volumosa caía para o outro, obedecendo a uma risca perfeita. Devia ser novidade, porque Elda deixou-se ficar uns segundos a admirar o resultado.

— Bem, Barto, ganda pausa…

— Não gozes… Diz lá, curtes?

— Diz-lhe que está fantástico. É o que ele quer ouvir. — Era Brísida, que apreciava a cena à porta do apartamento, metida num inenarrável vestido às manchas de leopardo. Elda riu-se, foi dar-lhe dois beijos. Impossível compreender se por trás daquelas falas e gestos se escondiam igualmente as consciências dos colegas. Elda já bisbilhava ao ouvido de Brísida:

— Vê lá se não te queres torcer só mais um bocadinho para ele.

A outra levou as mãos ao peito, a simular um pasmo exagerado.

— Já viste o apartamento? — perguntou Bartolomeu.

Pela primeira vez, identificou-se com a reacção que demonstrou. O apartamento era vetusto e não muito espaçoso, mas o sol atravessava-o de um lado ao outro. Através das janelas escancaradas, o corredor deixava ver à esquerda a Sé de Lisboa, e à direita a imensidão do rio Tejo.

Num nicho, afundada no sofá em frente ao televisor, a cabeça de Carola emergia de um capucho. Elda quase não a reconheceu naqueles preparos: os olhos pintados de preto, uma argola de metal no nariz. No ecrã, uma mulher de microfone na mão relatava um acontecimento qualquer, diante de um punhado de pessoas que exibiam cartazes. Elda apanhou termos vagos, «escassa afluência», «embaixada da Rússia». Aquele era um cenário de ficção científica, um futuro distante, ou talvez outro planeta que tomara como molde a Terra.

— Olha para isto — resmungou Carola com má cara, como se respondesse à sua estupefacção interior. — Quatro gatos-pingados. Raio de país!

— Do que é que ela está a falar? — perguntou Elda, em surdina, a Bartolomeu.

— A tal manifestação — disse o rapaz, sem se esforçar por baixar a voz. Foi sentar-se ao lado da colega, entretido com uma maquineta luminosa que fazia barulhinhos. Enquanto mudava canais, Carola deixou escapar uma queixa irritada:

— E nós aqui à espera dele

Elda puxara Brísida para o lado, e perguntara, cheia de reticências:

— Olha lá, de quem é este apartamento, mesmo?

Brísida mostrou-se confusa, de olhar perdido e lábios entreabertos. Claramente, não tinha resposta. E Elda podia sentir no seu corpo, ou no corpo que habitava, um frio que lhe percorria a espinha. Insistiu:

— Falta aqui alguém, não é? Devíamos ser seis.

Era uma voz aflita a sua, quase um pedido de ajuda.

Mas aquele brinquedo de Bartolomeu fazia barulho, girou a cabeça para resmungar. Reparou então em Fernão no compartimento ao lado, curvado contra a parede junto à grande janela que dava para o rio. Elda abandonou a amiga e avançou pelo quarto.

O rapaz estava de olhar pregado a um ecrã, mais pequeno e fino.

— Ei, Fernão. Que tal?

Ele sorriu para ela como se ganhasse o dia. Se isso a impressionava, Elda não traía emoção nenhuma.

— Estou a ver se consigo terminar o vídeo. Já falta pouco.

— Era suposto ajudarmos todos, não é? — perguntou ela, enquanto pousava a mão no ombro do rapaz. — Era tão bom se pudéssemos acabar hoje esta porcaria…

Fernão esbugalhou os olhos em direcção ao corredor, apontou dois dedos à têmpera, fingiu disparar. Daqueles três, não valia a pena esperar nada. Ela riu-se:

— Já só falta editar o último take — esclareceu ele. — O problema é aqui, olha… Tu escangalhas-te sempre a rir nesta cena.

Deu um toque no teclado, e um curto vídeo passou no ecrã. Como um filme em que tivesse entrado, mas onde estava o projector? Era filmado num átrio de centro comercial; Fernão caminhava por entre vitrinas partidas, corpos espalhados pelo chão. Elda quase se assustou, mas sabia que eram personagens: na história, ele ajoelhava-se, fechava com pesar os olhos de vítimas esvaídas em sangue. E então um rapaz, vestido de preto e dentes salientes, saltava do interior de uma loja pela montra, agarrava-lhe o pescoço, pronto para o atacar. É ele, pensou Elda, reconhecendo o vulto de Flávio Hirpo. Fernão debatia-se, gritava; mas uma seta lançada ao coração do atacante salvava-lhe a vida. Então, levantava a cabeça: e, de baixo para cima, a câmara apresentava Elda, arco na mão. Aproximavam-se um do outro, ela a encará-lo com desconfiança. «Mataste-o», constatava Fernão, e ela respondia: «Era ele ou nós». Um compasso de espera, olhos que se avaliavam. Mas Elda avançava, e a cena terminava com um beijo ardente.

 

*

           

Não era operação fácil, mas Bartolomeu apoiou-se de costas à grade da janela que dava para a Sé, e, com o braço esticado até onde lhe foi possível, enquadrou-se no pequeno aparelho electrónico e tirou uma fotografia. Que corte de cabelo absurdo, pensou, ao olhar para a imagem, mas o rapaz que tomara conta do seu corpo pelos vistos estava orgulhoso: tocou num símbolo, escolheu «Sofia» nos contactos, seleccionou enviar. Supusera antes pela conversa que aquilo fosse um telefone, depois uma câmara fotográfica, mas, enquanto os seus dedos deslizavam pelo ecrã, concluía que afinal o que tinha nas mãos era uma espécie de computador multifuncional. Percebia as coisas assim, aos pingos: estava numas águas-furtadas com vista para a catedral, da sacada dava para ver um eléctrico amarelo que passava pelo largo.

Arrumou o aparelho no bolso de trás das calças, e ainda bem, porque não o largava desde que a ligação começara. Um bando de pássaros rasgou o céu, o som perdido de uns batuques chegava-lhe da rua. Sabia bem estar ali. Brísida veio pousar os cotovelos a seu lado, reconheceu-lhe o cheiro doce dos últimos dias. A própria garganta apertava-se, como se tivesse sede, mas era o corpo de outro. Embora nenhum dos dois dissesse nada, ele podia sentir no ar uma tensão que não compreendia. Quando o braço dela roçou o seu, olhou para trás, a averiguar que não havia ninguém no corredor. Carola estava colada ao televisor e não os podia ver, Fernão e Elda lá para dentro. Então ele mesmo reclinou-se, ao de leve, para cima da companheira. Ficaram naquilo uns minutos, um namoro silencioso, desconcertante para ele, que observava externamente o próprio corpo pôr-se em cena. Tudo lhe era estranho, não detinha o controlo das emoções que sentia aflorar. Desta vez, foi ela quem olhou para trás, com discrição, antes de aproximar a boca da sua.

— Não, espera… — disse ele baixinho, a indicar com a cabeça que tinham de ter cuidado. Carola levantara-se, dirigia-se à cozinha com um grunhido.

Bartolomeu arredou-se, acenou de longe para Carola, depois revirou os olhos para Brísida. Ela imitou-o: estavam na mesma onda. A água corria na pia, ele lançou-lhe um sorriso cheio de significados. Dás cabo de mim, princesa Brísida passou-lhe o dedo indicador pelo peito, a trincar os lábios, enquanto se encostava à parede.

Na sua consciência, a rapariga deplorava aquelas figuras, mas encontrava-se refém de um alter-ego, ainda por cima com um gosto indumentário mais do que discutível. Apesar disso, a proximidade de Bartolomeu não lhe era indiferente. Havia duas semanas que duravam, também no Instituto, os olhares manifestos, os toques de mãos fugazes no corredor, uma predisposição irresoluta e inexplicada. Aquele rapaz descarado não era ele, mas em parte era.

Para fazer o tempo passar, sacou também ela do aparelho electrónico, onde fez desfilar a lista das comunicações recentes.

— Não percebo. Não estávamos à espera de alguém?

Olhava para o número que aparecia mais vezes, e decidiu tocar no botão verde para ligar. O número que marcou não se encontra atribuído. Desligou, enervada.

— Estou a falar contigo — precisou, para o caso de ele não ter reparado.

— Eu sei. Havia outro. Não era… Tiago?

— Tiago? Qual Tiago? Não conheço nenhum Tiago. Não era esse o nome.

Bartolomeu não soube responder, baralhado. Dentro de Brísida, uma voz gritava-lhe o nome de Flávio Hirpo, mas ela era incapaz de ouvir.

Entretanto, Carola afastara-se, o perigo passara.

O colega pôs-se de novo a seu lado, de cotovelo colado ao seu, deslizou-lhe um dedo pelo braço. Ela ainda se queria concentrar, mas o contacto perturbava o raciocínio. E um sinal sonoro fê-la desviar-se de vez do mistério.

— Parece que tens uma mensagem — avisou ela, numa voz arrastada.

Bartolomeu pegou no aparelho, tocou num botão. Snapchat. Ela espreitou, pareceu-lhe ver a foto de uma rapariga em trajes menores.

— É ela, não é?

— Ela quem? Hoje andas numa de fantasmas…

— Escusas de mentir, eu já sei. Já percebi. — E distanciou-se dele. — «O plano entre nós era só uma curtição»…

Bartolomeu voltava a aproximar-se. Na sala, Marcello estaria a ver tudo.

— Não… — protestou ela, sem muito vigor. — Não me toques.

Mas ele colou o corpo ao dela, agarrou-a, sussurrou-lhe ao ouvido:

— Não delires, baby… Sabes bem que para mim só existes tu.

 

*

 

Não somos mesmo nós, decidiu-se Carola, é o nosso corpo, mas somos outras pessoas. Tinha de viver a comédia, e pelo menos a parte que lhe coubera não era muito exigente. Estava esparramada no sofá havia horas, ou assim lhe parecia, a premir botões no aparelho mágico que permitia mudar de canal televisivo. A roupa grossa abafava-a, não percebia por que não tirava ao menos o capucho da cabeça.

— Espaço para mim, pode ser? — pediu Fernão, em pé. — Preciso de uma pausa.

Fez uma careta para mostrar bem o seu incómodo, mas chegou-se para o lado. O rapaz sentou-se em cima de uma almofada, pôs-lhe uma fatia de piza em frente ao nariz.

— E se comesses? Estás cadavérica.

— Não sei como é que consegues comer esse nojo.

— Uma delícia.

E também cheirava bem. Carola sentiu fome, mas afastou o prato com um esgar de desdém, para depois observar pelo canto do olho o colega a comer aquilo. Ajeitou-se no sofá, mudou de canal. A seguir outra vez, e outra, e mais outra.

— Eh pá, que desatino, pára com isso — queixou-se Fernão.

— Toma. Faz tu o que quiseres — e Carola passou-lhe o comando.

Com os dedos besuntados, ele pressionou um número depois do outro, sabia o que queria. De repente, uma música violenta ocupou a sala.

— Gostas? — perguntou, a abanar a perna. Ela encolheu os ombros, como se aquilo ou outra coisa qualquer fosse o mesmo, e Fernão continuou, sem ligar à resposta: — Devias ter ido ao concerto. Espectacular.

— Não me apeteceu — Estendeu a mão até à mesa junto ao sofá para agarrar de novo a maquinazinha: sempre presa àquilo. Era a enésima vez que tocava no pássaro azul e percorria a barra com um dedo, enquanto fazia girar a argola no nariz. Frases mínimas, fotografias, uma sucessão de sinais incompreensíveis: #direitoslgbt #denunciem. Pronunciou a meia-voz qualquer coisa que nem ela própria compreendeu.

Quando voltou a pousar o objecto, observou o pequeno porta-retratos sem fotografia. Desta vez, ficou uns segundos a olhar para aquele espaço em branco, à procura de uma resposta qualquer. Fernão continuava a balançar a cabeça ao som da música. Ela perguntou:

— Olha lá… Porque é que estamos nesta casa? És capaz de me dizer?

— A terminar o vídeo, não é? Temos de entregar para a semana.

— Pois. Mas não é isso que estou a perguntar. Não te faças de parvo.

Fernão respondeu a despachar:

— Não sei do que estás a falar.

— Sabes sim senhor. Como é que viemos parar a este apartamento? — Pegou na moldura desabitada, como se apresentasse uma prova cabal, mas ele não mexia a cabeça. — Diz lá, não falta aqui uma pessoa?

— Tenho de ir ajudar a Elda — Via-se que a situação também o preocupava, mas Fernão desconversou: — Nós os dois é que estamos a fazer o trabalho todo. Vocês só precisam de assinar, por isso não reclames.

— Eu nem sei editar. E o que é que isso tem que ver?… Não te vás embora, olha lá, isto não é normal! — Mas ele já desertara, preferia não levantar problemas. Política da avestruz, condenou no seu íntimo, como se a sua trajectória e a da personagem fossem a mesma. — Até mete nojo…

Levantou-se numa fúria, entornou um copo aos seus pés, e avançava pelo corredor, com o corpo todo encolhido, quando esbarrou em Bartolomeu. Lançou-lhe um olhar tenebroso, a julgar pela reacção, e foi trancar-se na casa de banho, a espumar.        

Pela primeira vez naquela ligação, viu-se ao espelho. Os olhos pareciam esmurrados com aquela camada de tinta preta e, ao puxar o capucho para trás, as raízes ruivas despontavam no cabelo asa de corvo. Além do brinco no nariz, que era a mudança mais notável, achou-se pálida, demasiado magra: Fernão tinha razão. Era evidente a repugnância que lhe causava ver-se a si mesma ao espelho, embora não desviasse o olhar.

Bartolomeu foi bater-lhe à porta, chamou por ela.

— Deixa-me em paz — gritou, cheia de raiva, e ele não insistiu.

Carola queria mudar o rumo da tarde, nada daquilo lhe correspondia: a irritação, o fôlego entrecortado, o chuto dado ao lavatório. Mas nada podia fazer. De olhar fixo no seu reflexo, levou a mão ao bolso e retirou o estojo onde guardava a lâmina de vidro. Depois, arregaçou as mangas, contemplou a colecção de cortes. Deu um grande suspiro antes de pôr a lâmina em contacto com a pele. Estava presa no seu próprio corpo e sabia que ia experimentar a dor.

 

*

 

— Então, está a avançar bem? — perguntou-lhe Brísida, com uma simpatia pouco convincente, apoiada à banca da cozinha. — Se precisarem de ajuda…

Fernão olhou para ela com desprezo, pegou na garrafa de água e virou costas com um grunhido. Podiam pô-los no fundo do mar ou numa nave espacial; com Brísida não atinaria nunca, concluiu, entre o irritado e o satisfeito.

Julgava todo aquele teatro deprimente: Brísida que parecia saída de uma feira, Bartolomeu agarrado ao telefone a ver vídeos de gatos, Carola a arrastar-se de um lado para o outro com um ar macambúzio. Mas o pior esperava-o na sala para onde as próprias pernas o obrigavam a regressar agora. Elda.

Quando dirigiu o olhar para o computador, onde levavam já horas a rebobinar imagens absurdas para trás e para a frente, não a encontrou. Chegou-se à janela aberta. Ela estava fora, no telhado das águas-furtadas, inclinada e de olhos fechados, dois fios nos ouvidos. Mesmo se havia um mural de protecção mais abaixo, as telhas desciam em cascata para o vazio, e Fernão sofria vagamente de vertigens. Mas apoiou as mãos no parapeito, o que para si nunca era fácil, e lançou-se com um impulso para o exterior. Porque é que estou a fazer isto?, perguntou-se.

Elda deu pelo movimento, abriu os olhos, sorriu-lhe. E isso bastou para que mais uma vez, contra a sua vontade, o ritmo cardíaco dele acelerasse. Foi-se aproximando devagar, arrastando o corpo com cautela, porque a mão lhe doía, enquanto ela, talvez para o deixar mais à vontade, desviava o olhar para o rio.

— O que é que estás a ouvir? — perguntou, quando a alcançou.

— A mesma canção, vezes sem conta. Estou viciada.

Elda passou-lhe um auscultador, num gesto em que se misturavam confiança e pudor. Fernão levou-o ao ouvido, o som chegou-lhe logo à cabeça, um rangido melancólico que identificou em pouco tempo.

— Damon Albarn. Percebo.

— Conheces? A sério?

Ele só sorriu, pousou o olhar no dela um pouco mais do que, no seu interior, julgava tolerável.

Ia para devolver o fio, mas Elda travou-lhe o gesto com a mão. Ficaram assim, no telhado, a ouvir a mesma música, com umas palmeiras na paisagem. As pessoas que passavam lá em baixo, na rua, levantavam a cabeça de vez em quando na direcção deles.

— Tu não sabes mesmo nada? — perguntou então Elda. — Do outro?

— O outro desapareceu — decretou Fernão. — Tu mataste-o.

Não conseguiu compreender o tom com que pronunciara aquilo, e Elda também não deu de si. Mas Fernão pensou no pobre Flávio Hirpo, estendido na praia de Odeceixe. Não recordava sequer os traços do seu rosto.

Agora, o sol mergulhava no lençol de água, em frente à cidade ribeirinha. Com a chegada da noite, o rio deveria esfriar.

— E conseguiste terminar o vídeo? — perguntou ela.

— Hum.

A melodia de base continuava a tocar em círculo, a imagem daquele beijo não lhe saía da cabeça. Fernão sentia o corpo tenso, como se ganhasse coragem. Mas foi ela quem tomou a iniciativa de se encostar.

— Importas-te?

— Nada.

Aninhou-se junto a ele, a contemplar o céu arroxeado. Ele tentou passar-lhe o braço direito pelo ombro, mas não conseguiu bem. Ouviu-se dizer:

— Se dependesse de mim, este momento era como a canção. Replay. Mil vezes.

Ela riu-se outra vez. Depois, deteve os olhos nos dele, de novo, uns segundos que não passavam. Não compreendia os sentimentos que se apoderavam de si, pertenciam com certeza ao corpo que não dominava. A situação fugia ao controlo. Nunca pensara que Elda fosse bonita mas admitia que aquela rapariga no telhado o era. E entregava-se ao langor daquele momento, como numa realidade alternativa.

Não, isso não… isso não, pensou, enquanto os seus lábios se aproximavam dos dela. Mas Fernão e Elda trocaram ali um primeiro beijo.

 

5

As refeições em família implicavam aquele compromisso. Elda era obrigada a alternar respostas esquivas às solicitações da mãe e um silêncio comedido face às provocações do pai. Aprendera a gerir esse equilíbrio ténue, sabendo que para o quebrar bastaria uma desatenção, ignorar uma opinião que exigia réplica ou responder com monossílabos a uma pergunta que pressupunha desenvolvimento.

Os anos sem pai estavam sepultados definitivamente no passado; agora tinha de se haver com aquela circunstância. Com ele, as reacções eram sempre imprevisíveis. Às vezes, simpatias, ternuras, até alcunhas meigas. Outras, uma tensão pesada, um rancor sem motivo aparente, à beira de eclodir, e então qualquer reacção servia de alavanca. Nas últimas semanas, Elda passara a guiar-se por uma regra de ouro: nada revelar sobre si, ou sobre os colegas, mesmo nos dias de acalmia; e sobretudo nunca manifestar nenhuma opinião pessoal. Sabia muito bem que tudo podia ser usado contra ela, quando a maré virava.

Porém, aquela era uma ocasião especial: a véspera do segundo casamento de Júlia e Albano. Esperava-se dela um investimento mais convicto na conversa à mesa, e havia pouca margem para comportamentos erráticos.

Simplesmente, a ficção para que se vira impelida naquele dia era mais forte. Sob a aparência da apatia, as emoções vividas na trama alheia ainda repercutiam. Como podia Elda responder à altura, e marcar presença, quando se sentia tão extirpada da vida? A melodia que a acompanhara ao longo da experiência soava no seu íntimo, sem interrupção; mas já tinha a certeza de que a viria a esquecer, de que as recordações do dia se diluiriam, de que enfim tudo se reduziria à evocação de uma memória morta.

— Filha… o pai está a falar contigo! — repreendeu-a Júlia.

— Desculpa. Ainda estou muito cansada. Sabes que hoje…

Ao chegar a casa, Elda comunicara aos pais que se tinha enfim conseguido ligar ao Rest.2. Incapaz de conceber uma estratégia, esperava pelo menos angariar tolerância para o seu estado de alheamento. Mas Albano lançava-lhe um olhar voraz, e ela sentiu aquele súbito aperto no peito que assinalava perigo.

O pai não se dignou repetir as palavras perdidas, e Júlia desviou a conversa para a cerimónia do dia seguinte. Elda esforçou-se por fazer uma pergunta, mas não conseguiu seguir a resposta da mãe. Factos concretos, questões de logística: todo o universo de Júlia em acção, e ela só queria voltar às águas-furtadas de Lisboa, aos mesmos acordes repetidos. Voltava a reclinar-se naquelas telhas, mas assim tropeçava no corpo de Fernão; e ao lembrar-se em Lisa sabia que não devia, mesmo se ele a incentivava com o braço, palavras doces, um sorriso irreprimível.

Acordou com um murro do pai na mesa.

— Não, desculpa… Eu não…

— Deves achar que sou parvo… Desde que te sentaste à mesa, estás para aí, com o teu ar superior, a fazer pouco de nós. Claro! Folgam-te as costas. Muito cansada, muito cansada… O dia todo a olhar para o ar, na companhia daqueles artistas. Grande trabalho. Sabes que eu passei o dia a trabalhar…

Muito vermelha, procurando não trair nenhum sentimento, Elda repetia para si mesma: Já está, já está. Júlia procurou intervir, mas Albano ripostou com violência:

— A tua filha acha-se muito esperta. É o resultado da educação que lhe deste — concluiu. E, voltando-se para Elda, uma ameaça: — Mas aqui as regras mudaram, percebeste? Não há cá risinhos. Se tens alguma coisa a dizer, dizes. Se não, calas-te. E olha que, se for preciso, ainda estás em boa idade de levar um bofetão, ouviste?

O resto do jantar passou-se em silêncio. Elda deixou-se ficar sentada na cadeira, imóvel, mais tempo do que o normal. Nem valia a pena tentar argumentar, não lhe ia dar nenhum motivo. Mais tarde, Júlia viria dizer-lhe baixinho, à beira da cama, como de costume: «Para que é que o provocas? Já sabes como ele é…» Sentia-se aniquilada pela ideia de participar naquele matrimónio. O ódio pelo pai era a certeza que a salvava mas, ao deitar-se, sabia já que, no dia seguinte, o turbilhão de sentimentos que agora a dominava se teria aplacado e que aquela altercação se inscreveria na normalidade. A raiva que no momento presente lhe dava pelo menos uma sensação de realidade desvanecer-se-ia, como uma música que, aos poucos, deixasse de tocar.

Demorou a conseguir adormecer. Ao chegar ao Instituto, na manhã seguinte, respondeu com um sorriso frio aos cumprimentos dos colegas. Não ousara falar da ligação da véspera; todos deviam achar bastante ridículo o seu papel. Marcello foi ter com ela, para acertar a hora a que a deveria fazer regressar da ligação, de modo a que pudesse dirigir-se ao local da cerimónia com tempo.

Elda tinha umas horas de liberdade no mundo virtual, e poderia, como qualquer um dos colegas, excepto Tiago, fazer aí tudo o que quisesse. Mas o que fez foi repetir a mesma experiência a que nos últimos tempos se entregava. Reapoderou-se do corpo de rapariga negra e atraente, que envergara indevidamente numa ligação de interacção e que, nas passadas semanas se tornara uma segunda pele. Que importava que Marcello dissesse que aos impulsores não era possível mudar de corpo: para ela, era só desejar e, num abrir e fechar de olhos, recompunha-se outra. Espreitou por trás do ombro e ele lá estava, um indivíduo ao calhas, a dirigir-lhe olhares obscenos. De cada vez, um homem diferente, o mesmo aceno. Aproximou-se com passos decididos. Por meio de gestos e sussurros, o homem insistia para que ela contemplasse directamente a acção que executava, mas, como sempre, ela não ousava desviar os seus olhos dos dele. Apenas estendia a mão e fazia o que lhe era pedido, como se não estivesse mesmo ali.