05
LE CŒUR NET
1
Os dias dela não eram como os dos outros. Também tinha os seus momentos de fraqueza, claro, mas Brísida não gastava o tempo todo no Rest.2 a perseguir fantasias ou a olhar para a paisagem. Era a única com uma base estável: todas as manhãs, ao ligar-se, reencontrava a sala limpa e a secretária ordenada, como se o serviço de quartos tivesse passado durante a noite. Uma janela abria para o campo de centeio, extenso a perder de vista, e as espigas eram a imagem que deviam inspirar o seu trabalho, perfeitas na simplicidade do traçado. Só tinha de instalar-se em frente à tela de comandos e retomar a fórmula interrompida na véspera. Era a regra de ouro: nunca esgotar um caminho ao fim do dia, para não se deparar de manhã com o painel em branco. Truques que o pai lhe ensinara. Naquela manhã, ensaiou duas ou três linhas ditadas pela intuição, antes de se decidir a ir buscar um livro à estante. No espaço virtual, os dedos saltavam páginas mais depressa, lia como quem bebia informação.
Vinha somando progressos desde que integrara o projecto, semanas a subir a fasquia. Um dia ia decifrar o código que regia aquele mundo novo, mas isso não seria para já. Por agora, consumia o tempo à procura de uma simples resposta. Já ia na quarta ou quinta tentativa, sem atinar com o resultado. Levou as mãos à cabeça, irritada; e, logo a seguir, quando olhou para trás, identificou junto ao candeeiro um vulto habitual.
— Que é, Brísida, outra teima? — o professor Simões já se aproximava da tela, onde se alinhavam números e sinais.
Aquele senhor de barbas brancas e forte sotaque portuense fora o mais competente matemático do país. Desempenhara um papel preponderante na formação do seu pai, décadas atrás, antes de ser chamado para trabalhar na Bóreas. Por ocasião de uma visita a Horácio Quife, o professor conhecera-lhe a filha, já uma criança esperta, interessada por equações, e expusera-lhe um problema. Brísida não fora capaz de o resolver, mas conseguira pressentir que era irresolúvel, e naquele dia aprendeu o que era um paradoxo. Embora já então fosse mais madura do que seria de esperar, não passava de uma garota, e merecer a atenção do sábio representara para ela uma vitória. Não voltara a encontrar o professor Simões em vida e, no entanto, quando convocara a sua projecção no Rest.2 pela primeira vez, os sulcos daquele rosto reconstituíram-se como por magia.
— Desculpe incomodar, professor. É que isto é árido.
— Ora, incomodar… — repetiu o velhote com ar de gozo. Brísida corou, como se tivesse sido apanhada em falso. Era evidente que uma projecção da sua mente não tinha querer, nem podia servir-lhe de ajuda, pois as respostas que possuía vinham do fundo de si mesma. Convocar a veneranda figura do professor Simões era uma forma de raciocinar com mais clareza, mas não valia a pena fingir que se tratava de algo mais do que um monólogo. — Vamos por etapas. Já experimentaste todas as variantes da fórmula de base?
Recomeçar, então pelo básico: aceder ao histórico do fantasma da irmã, procurar no registo de utilização uma pista para a identidade daquela Verónica da estação. A irmã não se ligara, disso estava certa; e nem teria alugado o fantasma durante o período de gravidez, com receio de alergias. Mas, a haver usurpação, teria de haver pegadas, ninguém conseguia fazer um trabalho tão limpo. E o registo permanecia imaculado.
— Porque é que achas que é uma pessoa? — insistia o mestre. — Não há rasto humano, mas pode haver rasto.
— E então…? Ah, espere. Quer dizer que…
E Brísida desviou a atenção do registo de Verónica para os dados associados à própria ligação de interacção. O professor Simões manteve-se em silêncio enquanto ela alinhava códigos, concentrada, e o vulto já saíra do seu campo de visão quando surgiu um resultado. De facto, nenhum utilizador humano introduzira um comando para usurpar o fantasma de Verónica; o próprio sistema requisitara a imagem da irmã para a ligação, deliberadamente. Vieram-lhe à cabeça palavras de Marcello: o novo protótipo dependia do mundo deles para se aperfeiçoar e expandir. Só que, no fim de contas, eles só eram impulsores até certa medida; ao reunirem-se numa interacção, o Rest.2 seleccionava os estímulos de que necessitava, e agia em consequência. Para a máquina, o corpo da irmã dela servia um fim; era um produto descartável, coisa para usar e deitar fora.
Ficou uns minutos a pensar naquela verdade crua, que a deixava agoniada.
— Podia ir falar com o Marcello, mas não adianta… — reflectiu, em voz alta, e só nesse momento se apercebeu de que a projecção do professor Simões já desaparecera.
Do tutor não podia esperar respostas. Tudo evasivas, como a história de Flávio Hirpo. Outro beco sem saída... Brísida não conseguia esquecer a última aparição do rapaz e as palavras que com ela trocara, julgando que falava com Elda. Mas pelo menos em relação a esse mistério havia uma pista a seguir.
*
— Para mim, é o James Dean. Mas é óbvio que tu preferes o Rock Hudson — disse Verónica, mais alto do que a irmã desejava, embora já corresse o genérico do fim da fita. — Não por acaso, parece-se um pouco com um certo rapaz…
— Oh! És mesmo parva — sussurrou Brísida. — Se estás a falar do Bartolomeu…
— Eu!? Tu estás a falar do Bartolomeu! Eu não disse nomes, ou disse?
Verónica era certamente a pessoa mais exuberante da assistência naquela tarde. Aos domingos, eram projectados filmes em catadupa no Monumental. Continuava a ser uma das poucas distracções que a cidade oferecia no dia de descanso. Enquanto a sala se esvaziava, Brísida lia nas caras dos espectadores um misto de consolo e de tristeza. Eram quase todos pessoas de idade, que procuravam curar com tais sessões a nostalgia do mundo perdido. Para os mais jovens, que já não tinham conhecido outra época, o filtro da ficção perdera a intensidade face à possibilidade de protagonizar experiências de vida no Rest. Mas quando as irmãs eram pequenas o pai costumava levá-las aos filmes e, desde então, Brísida tornara-se uma amante de cinema.
— Isso já acabou — afirmou Brísida com convicção. — Isso, com o Bartolomeu. Aliás, nem chegou a começar. Não aconteceu nada.
A verdade é que não percebia Bartolomeu. Quando o convidara para almoçar, logo nos primeiros dias, pensava que alguma coisa podia estar mesmo a nascer entre eles. Tinham trocado o tal beijo no Rest.1, em plena aflição, quando a horrível névoa ameaçara os seus fantasmas no Convento de Cristo. E depois… nada. Entretanto, ele clarificara o recente mal-entendido da estação, o encontro com a pressuposta Verónica. Mas a questão já nem era essa. Era o comportamento dele que era incompreensível: à distância, parecia atirar-lhe olhares; se ela se aproximava, escudava-se na companhia dos colegas. Brísida até se perguntava se vinha imaginando coisas desde o princípio.
— Então: desafio. — lançou a irmã. — Se tivesses de escolher….
— Não, Verónica, por favor…
— Vá lá… Desafio! Tinhas de escolher entre um enrolanço no cinema com o Fernão… mas enrolanço a sério, com apalpões e beijos de língua! Enquanto passavam comédias à portuguesa!
— Bdhhh! Não, pára…
— Ou então… completamente às escuras numa sala com o Marcello, a ouvir a respiração dele, e… de vez em quando, sem avisar, ele aproxima-se e dá-te beliscões. Uma coisa sexy. Até!
— Que estupidez, isso é tortura! Recuso-me.
— Vá, tens de escolher. Desafio! — e Verónica torcia-se, deliciada com o dilema.
— Bolas! Beliscões do Marcello ou… um enrolanço com o Fernão? Que horror. Não, os beliscões. Prefiro os beliscões.
Verónica soltou uma gargalhada. Brísida suspirou: já sabia que ia ouvir a palavra «beliscões» durante o dia todo. Levantou-se da poltrona, a disfarçar o sorriso, e pressionou-a para lhe seguir o exemplo. A irmã ainda se ria, sentada, com a mão na barriga, demorava a reagir. Aquela gravidez estava a cansá-la mais do que as anteriores.
— Voltamos para casa?
— Não, estou farta de ficar na cama. Vamos dar dois passos.
Caminharam no átrio do edifício, por entre cartazes amarelecidos pelo tempo. O Feiticeiro de Oz, E Tudo o Vento Levou, Serenata à Chuva: clássicos em que, quando eram crianças, se imaginavam a viver. Brísida perdera o contacto com Verónica desde que esta partira de casa dos pais. A mãe, Úrsula, agia como se ela se tivesse evaporado, e durante anos nem pronunciara o seu nome. Quando Brísida chegara a Lisboa, a irmã era uma estranha com quem se via forçada a partilhar casa, e não fora fácil adaptar-se à sua personalidade, ouvi-la cantar músicas foleiras de manhã à noite, tolerar as manias, a efervescência, as saídas inconvenientes. Mas Verónica revelara-se uma amiga, a única pessoa com quem podia contar.
— Vai começar outro filme. Uma espécie de musical francês, Lola. Apetece-te ou queres ir para casa? — propôs Brísida.
— Por mim, ficava. Tu ainda tens tempo?
— Só tenho de lá estar às seis.
Regressaram à sala, instalaram-se nos assentos e aguardaram alguns minutos que a sala escurecesse. Brísida acompanhou o início do filme com uma inquietude crescente, a música tomava conta de si; aquilo era Beethoven? Não havia razão, mas o encontro daquela tarde deixava-a assim, com uma sensação de incómodo, como se caísse.
*
— O… o Monumental?
— O cinema… o Monumental! Nunca foste, aos domingos? Estás cá há pouco tempo, como eu. Olha, até era giro irmos juntas para a semana, hã?
Brísida viu o rosto de Elda iluminar-se. Era tão fácil que até irritava. Havia dias que se esforçava por ser atenciosa com a colega, fazer-lhe perguntas depois das ligações, simular interesse pelo que ela fazia no Rest.2. A propósito do cinema, já ela lhe começara a contar uma daquelas histórias de Coimbra que a aborreciam de morte. Mas Brísida estava cansada e desejava um pouco de acção, interrompeu-a com uma pergunta idiota:
— Mas ias com um namorado? Lá em Coimbra, tinhas namorados?
— Ah, não! — respondeu Elda, com veemência. — Eu com os rapazes… não sei, não tenho jeito. Tu…? No Porto, tu tinhas?
— O quê? — Brísida não contara com a possibilidade de as perguntas lhe serem devolvidas naquele jogo. — Eu? Tive um namorado, sim. O Nuno.
Baixara a voz, olhara em volta. Já estava arrependida da escolha do local. Quando propusera a Elda irem tomar um café juntas, a outra sugerira logo o Torel, claro — mas impunha-se um terreno neutro, sem risco de interrupções. Com ar cândido, Brísida perguntara se já conhecia o salão da Academia das Ciências. Era um espaço modesto, mas bem cuidado, aberto no contexto de boas intenções dos anos noventa, frequentado por homens de fato e senhoras de mantilha saídas de outro século: sussurrava-se, bebia-se chá, lia-se o boletim de tiragem mínima. Brísida sabia bem que Elda não pertencia ali. Mas constatava que era a sua própria presença a atrair olhares de curiosidade, quando não de constrangimento. Era uma rapariga negra, bonita, nunca lho faziam esquecer.
— Gostavas dele? O que é que aconteceu? — perguntou Elda, em surdina.
— Oh, sabes como é. Era simpático, mas nem sei se gostava muito dele. Acho que não tínhamos grande futuro juntos. E os rapazes, tu sabes, só têm uma coisa na cabeça…
— Queres dizer… — Elda mostrou-se expectante.
Brísida teve vontade de a abanar. Com ela, era sempre preciso explicitar tudo.
— Olha, não é para me gabar mas, quando eu andava no liceu, ser minha amiga era uma promoção para as outras raparigas. Aqui, talvez isso não se note, somos só seis e eu passo ao lado, sei que ninguém gosta muito muito de mim. Mas no liceu… era diferente, eu era bastante popular. Quando é assim, tu tens poder, entendes? Nunca é claro se os rapazes querem andar contigo por quem tu és ou pelo que tu representas. O Nuno gostava de mim, é verdade, e era querido e tudo. Dava-me prendas, dizia coisas. Uma vez até me escreveu um poema, vê lá. Queria que fôssemos namorados. Mas provavelmente o que ele queria mesmo era ir para a cama comigo, para poder dizer, estás a ver? E quando isso aconteceu… Não sei, o interesse passou-lhe. Pronto, eu também não imaginava que viéssemos a ficar juntos, que ele não era a bem dizer um génio. Foi melhor assim.
Brísida parou de falar, irritada consigo mesmo por ter revelado tanto do seu passado àquela rapariga, que seguia tudo o que ela dizia de olhos abertos.
— Não é verdade — disse Elda, pouco depois.
— O quê, achas que eu tinha um futuro com o Nuno?
— Não, não é isso. Não é verdade que ninguém gosta de ti. O Bartolomeu gosta de ti, eu gosto de ti, a Carola… no fundo, ela também gosta de ti. E toda a gente te admira, toda a gente vê que és quem percebe mais disto. Acredita, não passas ao lado de ninguém.
Instalara-se um clima de intimidade um pouco perturbador. Brísida pensou: É agora.
— Achas mesmo? Não imaginas como fico contente por ouvir isso. A propósito… há uma coisa que te queria perguntar, há já algum tempo. Desde a primeira interacção no Rest.2, lembras-te, na praia?
Elda acenou com a cabeça. Brísida continuou:
— Então, na altura, quando o rapaz morreu na praia, quero dizer o Flávio Hirpo, tu disseste que tinhas falado com ele nas escadas que levavam à aldeia, ao mesmo tempo que nós o tentávamos reanimar, e… bem, ele deve ter-te dito alguma coisa, não é?
Na sua cabeça, Elda voltou àquele local. Jurara a si mesma não relatar um testemunho que apenas demonstrava que o rapaz não estava no seu juízo perfeito. Para quê fazer figura de tola? Contudo, Brísida acabava de abrir-lhe o coração, não podia escusar-se a contar a verdade.
— Olha, Brísida, vou-te contar isto mas por favor não digas a ninguém.
— Claro. Claro que não.
— O rapaz disse-me uma coisa, sim. Mas foi assim um bocado… esquisito.
— O quê? O que é que ele te disse?
— Disse… Enfim, olha… isto até me causa um bocado de vergonha… Disse que eu era fundamental no projecto. Que eu era o elemento mais importante do grupo.
Bolas, pensou Brísida, esta tipa saiu-me mesmo uma mitómana.
2
Normalmente, era obrigada a engatilhar o sorriso quando chegava ao Instituto, mas naquela manhã deparou-se com Carola à espera do elevador, no átrio, e veio-lhe logo raiva. Ainda não conseguia suportar a presença da colega, e via quase como uma afronta a ligeireza com que os outros já se tinham esquecido de que ela pusera a vida de todos em perigo. De resto, as dinâmicas no Instituto aborreciam-na: já sabia que, dali a pouco, encontraria Bartolomeu e Fernão amiguinhos como dantes, Elda atarantada a persegui-la com o olhar, Tiago escarrapachado a um canto, Marcello a fingir que viviam no melhor dos mundos. O mesmo filme, enjoativo, a que sentia não pertencer.
No Rest.2, nada daquilo. Grasnidos de gaivotas, à distância, mas as ruas estavam desertas enquanto caminhava, ao som dos próprios passos, por entre as arcadas do cais. Atravessou com calma a ponte de ferro sobre o Douro e, ao alcançar a outra margem, sentou-se num banco e respirou profundamente. O dia estava esplêndido, e a cidade do Porto amontoava-se em pormenores enquanto as águas límpidas corriam para a foz. Mas a ilusão ia desvanecer-se, como das outras vezes. Friccionou o pulso até ver materializar-se a pulseira, e inseriu os habituais códigos para abrir um portal.
Fechou os olhos e, quando os reabriu, ainda estava em Gaia, mas o dia já não era o mesmo. No Rest.1, a matéria da realidade era tosca: aos edifícios faltavam acabamentos, a erva aos seus pés parecia de plástico, a água do rio não tinha verdadeira consistência líquida. Do outro lado, a cidade era apenas um traçado escuro e desfocado, sob uma cobertura de nuvens que engolia a torre dos Clérigos. Inútil negar que a incomodava voltar a transitar entre modelos depois do episódio do Convento. Mas abster-se de o fazer significaria pôr em causa as suas capacidades; e, além disso, aquele era o único modo de reencontrar o seu mundo.
— Olá, Bibi — ouviu dizer uma voz madura atrás de si.
Brísida virou-se, abraçou o corpo largo e macio do pai.
— Pai… Papá! Que saudades!
— Então, foi só uma semana! — disse Horácio, bem-humorado.
— Eu sei. É que ando um bocado… assim. Parece que as coisas não avançam.
E queixou-se dos abusos do novo protótipo, do detestável tutor, dos colegas amorfos e imaturos. Exprimia-se num fluxo, fosse porque a companhia do pai a estimulava, fosse porque os poucos minutos de que dispunham para uma interacção no Rest.1 passavam depressa. Enquanto Brísida recapitulava os resultados das suas investigações no mundo virtual, Horácio seguia o discurso com desvelo, embora se importasse mais com as condições de vida da filha na capital. Não se sentia ela sozinha?
— Tenho a Verónica, não te preocupes.
— Não é a mesma coisa. E aquele rapaz?
— Quem, o…? Oh, deixa, está noutra. A sério. Nem te devia ter falado nisso. Diz-me lá, fizeste o que te pedi?
— Fiz. Não foi fácil, Bibi, os meus contactos no Conselho não soltam a língua assim sem mais nem menos. Mas há pessoas que me devem favores.
— E então, descobriste alguma coisa?
— Sim e não. Pelos vistos, o Flávio está mesmo morto. Sofreu um ataque cardíaco, na véspera do primeiro dia do projecto. Há documentos assinados, parecem autênticos.
— Ah! — Marcello já o dissera, mas Brísida imaginara que fosse outra mentira.
— Mas o que é intrigante não é tanto a morte dele — prosseguiu Horácio —, é a vida. Nascimento, estudos, história clínica: zero. Não existem registos, desapareceu tudo.
— Um pacto de silêncio. Mas não pode ser, não há ninguém…? — e então Brísida lembrou-se da excursão ao cemitério. — Foi a enterrar sem família…
— Espera, não há nada sobre ele. Mas há uma informação referente à família.
— O quê?
— Não me perguntes sobre os pais, disso não sei nada… mas há um parente declarado nos arquivos do Conselho. E não vais acreditar… Segundo os documentos, Flávio Hirpo era sobrinho de Marcello Galvano.
— Sobrinho do Marcello?! Mas… o Flávio era português!
Podia ser à mesma sobrinho do tutor, claro. Mas era um novo mistério. Quando as coisas pareciam estar a um passo de aclarar-se, tudo se tornava mais complicado. Um quebra-cabeças sem sentido.
O resto da ligação foi tempo desperdiçado, uma ânsia crescente, palpitações. Foi com alívio que regressou à realidade no fim do dia.
— Tudo está bem, Brísida? Estavas agitada no módulo… — veio perguntar Marcello, com paninhos quentes.
Desenvencilhou-se dele da forma mais educada que conseguiu. Mas bastava virar a cara e logo surgia outra investida.
— Correu bem a ligação, Brísida? — Elda, outra vez.
— Sim, sim — respondeu, às pressas.
Pegara na bolsa para se ir embora, mas a outra queria alguma coisa, era evidente. Andava sempre a fazer-lhe o cerco, sem coragem de falar.
— Estava a pensar que… — resolveu-se Elda enfim. — Tinhas-me dito que este domingo… sempre vamos…? O cinema, sempre queres ir?
Toda vermelha, a atropelar palavras, dava para ver que se enchera de coragem para conseguir perguntar aquilo.
— Pois… olha, afinal não vai dar. Desculpa, ando um bocado ocupada neste período.
*
— O que é que se passa? Aconteceu alguma coisa?
Brísida chegara ao prédio mais tarde do que de costume e sabia que não era normal tanta agitação àquela hora. Assustada com os sussurros e os olhares de dó das vizinhas, subiu as escadas e irrompeu pelo apartamento. Verónica encontrava-se estendida na cama, assistida por uma senhora.
— Tenha calma — disse a desconhecida. — Sou enfermeira. Neuza Melo, ao seu dispor. A sua irmã teve uma pequena hemorragia, mas está bem. A menina não sabe, mas isso pode acontecer nos primeiros meses da gravidez. Ela tem é de ser vista por um médico, não se pode facilitar. Vêm buscá-la daqui a pouco, esta noite fica no hospital. Despeça-se da mana.
Verónica estava talvez um pouco mais sossegada do que o habitual, mas parecia não haver de facto motivo para grande preocupação. A perda de sangue fora mínima, podia dar-se no início da gravidez e, explicou à irmã, já acontecera nas gestações anteriores. Ainda assim, por precaução, fizera soar logo o alarme interno do prédio. As grávidas tinham prioridade total em matéria de assistência. O hospital era ali ao lado, seria bem tratada e, se não houvesse contra-indicação do médico, poderia voltar para casa muito em breve.
— Mas isto é sempre melhor não fazer suposições — avançou a enfermeira Neuza, numa voz que pareceu desagradável a Brísida. — Pode ter de ficar numa casa de senhoras, e olhe que ficava lá bem. Eu trabalho numa, conheço bem as condições. Podia repousar e sempre tinha vigilância. Faça fé no que lhe digo, menina.
Brísida e Verónica trocaram um olhar feroz. Só desejavam um momento a sós, mas aquela mulher sentara-se na cadeira de verga do quarto e não fazia tenções de lhes dar a privacidade pretendida. Ouviam-se vozes na sala. Devido ao estado de sobressalto em que entrara em casa, Brísida deixara a porta escancarada e uma ou outra vizinha mais arrojada fora entrando. A jovem teve o sangue-frio de pedir à enfermeira Neuza, com um grande sorriso, que fosse ver se era o pessoal do hospital, calculando que ela facilmente se poria à conversa com as intrusas para averiguar se era casa idónea.
— Até que enfim… — disse Brísida à irmã quando a enfermeira se afastou. — Que mulher! Oh, espero que amanhã já possas voltar para aqui…
— De certeza que sim, não te inquietes. Já te disse, estou habituada a situações destas — tranquilizou-a Verónica.
Brísida esquecia-se por vezes de que aquela rapariga de aspecto tão jovial, apenas quatro anos mais velha do que ela, já tinha dado à luz três crianças. É verdade que nunca a vira em estado avançado de gravidez: ainda a confundia com a adolescente que se decidira a partir para Lisboa contra a vontade dos pais.
— Precisas que te ajude a preparar alguma coisa para a noite?
— A enfermeira já se ocupou disso. Podes é passar-me um envelope que está ali na primeira gaveta — pediu Verónica, apontando para uma cómoda.
Sem dificuldades, Brísida encontrou o que a irmã pedira, um envelope amarelo, bem fornido. Passou-o à irmã, que o abriu. Eram fotografias.
— Este é o Rui, vai fazer agora quatro anos — indicou Verónica, a apontar para a primeira fotografia do maço. — Aqui ainda era pequenino. Olha esta, é como ele é agora. Mandaram-me há coisa de um mês…
— Tu… tu tens notícias deles? Sabes onde estão?
— O Conselho manda-os para o Sul. Mas sim, tenho notícias, de vez em quando.
Os filhos de uma mulher superfértil como Verónica tinham maior probabilidade de serem também eles férteis. Claro que eram enviados para onde havia menos crianças. Brísida sentia-se um pouco comovida.
— Desculpa, eu… não fazia ideia. Quer dizer, nunca falaste sobre eles.
— Ó Brísida, não fiques assim. Não é uma desgraça — confortou-a Verónica com modos suaves. Não parecia a mesma rapariga. — Estou contente por ter tido os meus filhos, sinto-me orgulhosa deles, mesmo se eles não estão comigo. E hei-de sentir o mesmo por todos aqueles que vierem no futuro.
Úrsula, a mãe, nunca concordara com a decisão de Verónica. Uma mulher superfértil podia casar-se, se quisesse, e guardar pelo menos os primeiros filhos, com apoios financeiros. Mas a filha considerara que essa vida não era para ela. Assim era melhor para todos: o Conselho combatia a quebra demográfica, as crianças eram bem tratadas e ela aproveitava a liberdade que a situação lhe proporcionava.
Fizeram-se ouvir vozes masculinas à entrada. Verónica pôs as fotografias no envelope e inseriu-o num bolso da mala já preparada ao lado da cama. No mesmo momento, a enfermeira Neuza assomou à porta do quarto.
— Estão aqui os senhores do hospital, menina. É tempo de ir indo.
Verónica alçou-se e a irmã deu-lhe um abraço leve, como se tivesse medo de a amachucar.
— A menina Brigite fique descansada que eu cuido bem dela — declarou a enfermeira. — Amanhã pode passar no hospital para a ver.
— É Brísida… Obrigada, enfermeira. Cuide dela, por favor. Amanhã já a minha irmã há-de voltar para casa, se tudo correr bem.
3
Às quintas, ao fim da tarde, a Praça de Touros do Campo Pequeno enchia-se de gente. Feirantes profissionais ou particulares com iniciativa podiam estender toalhas no chão do recinto e nelas exibir todo o tipo de objectos em segunda mão, para venda ou troca. Brísida já tinha ouvido dizer, mas fugia de multidões.
Desta vez, contrariando a sua vontade, deambulava pelos postos de venda. O ajuntamento de curiosos e os pregões dos comerciantes eram suplícios por que se decidira a passar. Avaliava à distância o vestuário feminino em mostra, com medo de que os negociantes insistissem com ela para experimentar fosse o que fosse. Saias ruças e camisolas esburacadas tinham o preço à vista; as melhores peças, porém, deixavam-se cobiçar, sem qualquer indicação do valor pedido.
— Olhe-me o casaquinho, que coisa rica! — clamou uma vendedora desdentada, a exibir um casaco de malha sem forma. — Olhe, tão branquinho! Ficava bem à menina, que é morena! Então não era? Prove lá!
Com um esgar que fez as vezes de sorriso, Brísida escapou noutra direcção. Não suportava que a tratassem por «menina» e muito menos que a descrevessem como «morena». Notou ao longe uma banca que lhe pareceu mais recatada, mantida por uma senhora de idade. Havia peças e acessórios de boa qualidade, para homem e mulher. Artigos com certo requinte, bem conservados.
Apaixonou-se logo por um vestido roxo. O preço assinalado era superior ao que podia despender, mas não resistiu a pedir à senhora, que a observava da cadeira com um sorriso brando, se o podia experimentar.
— Com certeza. Tem aqui onde — respondeu-lhe, indicando com os dedos finos o tapume que garantia reserva.
Ao ver-se em frente ao espelho, escapou-lhe um sorriso. Nunca um vestido lhe caíra tão bem. Num impulso infantil, e embora soubesse que não o iria adquirir, saiu para mostrar o resultado à senhora amável.
— E esta? Fica-lhe mesmo bem — constatou a vendedora, algo maravilhada.
— Feito para ela — anuiu uma voz de rapaz.
Em pé junto à secção masculina da banca, Tiago, o sexto impulsor, fitava-a com desembaraço. Brísida teve a tentação de esconder-se, de tapar o decote, mas, em vez disso, encarou o colega, como num desafio. Nada tinha de que se envergonhar, e aquele não seria decerto o primeiro rapaz a observá-la. Só que Tiago lançava-lhe um olhar desinteressado, inofensivo, se fazia sentido exprimir-se assim. Aproximou-se dela com simplicidade e opinou:
— Devias levar. Roupa assim não se encontra todos os dias.
Brísida procurou um rasto de malícia ou de lascívia naqueles olhos claros, e sentiu-se vagamente defraudada por não encontrar nada disso.
— Não tenho dinheiro — admitiu, e começou a perscrutar outras peças —, e de qualquer modo não é para mim que estou à procura. É para a minha irmã.
— Faz anos? — perguntou Tiago, com naturalidade. Já estava também ele a olhar para as camisolas de homem. Palpou uma e perguntou: — Achas que esta é muito quente?
— Não. Não faz anos, está no hospital. E essa é quente, sim — disse Brísida, deitando o olho à peça que o colega tinha nas mãos.
— Ah, bolas. Quero dizer, a tua irmã. Não é grave, ou é?
— Não, dizem que não. Mas está a demorar mais do que o previsto… Não te preocupes. Olha, e aquela? — e apontou com gestos incertos outra camisola para homem.
— Cinzenta? Achas que preciso de uma depressão, é?
Brísida não respondeu, fingiu-se ocupada com a sua própria pesquisa. Tiago também não deu de si, mas ia espreitando o que a colega considerava como possibilidades.
— Levo esta. Não faças essa cara, eu conheço a minha irmã. Tu não levas nada? — Tiago encolheu os ombros. Brísida recomendou: — Não estejas à espera de encontrar melhor. Não sei se viste o resto da feira, mas…
— O resto é horrível, tudo péssimo. Coisas para usar e deitar fora. — Tiago fez um sorriso amargo e acrescentou: — Parece que é moda… Bom, vou andando.
— Se quiseres esperar por mim, vou só trocar o vestido.
— Não, vemo-nos no Instituto. Adeus.
Brísida voltou para trás do tapume. Pelo tom da última frase, a simpatia fora só um momento de distracção. Não havia por que iludir-se. Pode não me fazer avanços, mas é à mesma um estuporzinho, decidiu.
Quando se dirigiu à vendedora para pagar o vestido que escolhera para a irmã, já Tiago desaparecera.
— E este é para deixar cá — disse Brísida, entregando o vestido roxo que experimentara e voltara a dobrar com cuidado.
— Não, não, esse é para si — replicou a senhora. — O seu amigo já o pagou.
*
— O quê? O que foi? — Brísida acordou num sobressalto, encharcada em suor.
— Estava muito agitada. Tive de chamar-te.
Demorou a entender que Marcello se referia a ela própria. Passava-lhe um lenço pelo rosto, e, aos poucos, Brísida compreendeu que estava estendida no módulo, no Instituto. O tutor interrompera a sua ligação.
— E os outros?
— Ainda no Rest.2. É cedo. Tu começaste dar pontapés em tudo lado. Agora, tentas calmar-te e já voltas a ligar-te.
— Posso sair daqui? Não me estou a sentir bem.
De imediato, pensou que não tinha de pedir permissão, e, sem esperar, apoiou uma das mãos no rebordo, tentou levantou-se, sentiu uma ligeira tontura. Marcello amparou-a pelo braço.
— Tem certeza? Estás melhor deitada…
— Ajude-me a chegar à mesa, por favor. Preciso de ar.
Ele levou-a, como uma velhinha. Brísida passou pelos corpos dos colegas encapsulados nos módulos, veio-lhe a ideia de que tinha sorte em estar desperta, apesar do mal-estar.
Marcello pousou-lhe um cobertor pelos ombros, foi preparar um chá. Brísida via tudo isso acontecer como num sonho, o tutor era um duende que lhe dava prendas e ela só tinha de receber, sem abrir a boca para agradecer. Agora, estavam os dois sentados havia uns minutos, e já conseguia respirar sem dificuldade. Não tinham trocado uma palavra, o silêncio pairava no ar. Foi então que ela notou um pormenor.
— São três da tarde. Porque é que o Tiago ainda está no módulo?
— Ah, ele… está a tentar ligar-se.
— Desde esta manhã? Não acredito! Fica ali o dia todo, a ver se o Rest.2 o aceita?
— Depende. — E o tutor mantinha aquele sorriso beato, como se tivesse dado uma resposta razoável. Para quê passar o dia no módulo se não havia resultados? E, se a incompatibilidade durava semanas, não faria mais sentido procurar outro impulsor? Marcello, pelos vistos, considerava a situação normal. Acrescentou: — Agora, anda mais tranquilo. Tiago. O notaste também tu?
Foi a vez de responder ela com um trejeito que significava «depende».
— Eu sei que vosso não é trabalho fácil, mesmo. As ligações de interacção… é complicado não ter o controlo.
Brísida olhou quase assustada para Marcello, que se servia a si mesmo de chá. Agora que sabia que aquele homem perdera o sobrinho para o Rest.2, não era capaz de decidir se ele lhe parecia mais ou menos diabólico. E não conseguia encontrar réplica: como aceitar, de facto, não ter o controlo do sistema? Sabia, claro, que o objectivo sempre fora permitir às pessoas interagirem no mundo virtual, e que isso só seria possível se o Rest não fosse compelido a responder a vontades individuais. A livre escolha colidia com o intuito de base. Por exemplo, se lhe pedissem a ela para decidir, a realidade seria provavelmente um filme francês, e sem colegas a importuná-la.
— Para ti, deve ser complicado, sozinha em Lisboa — continuou o tutor. — Bartolomeu disse-me que tua irmã está no hospital. Como está?
— Ela… — Um aperto na garganta fê-la calar-se. Abanou a cabeça. Não era capaz de ter aquela conversa com Marcello. As mãos recomeçaram a tremer.
— Não te preocupa, Brísida, foi só um ataque de pânico. Não quer dizer repulsa.
Ela entornou a chávena que tinha nas mãos. Nem tinha sequer considerado a hipótese. Repulsa, a maldição virtual! Sabia, claro, que as manifestações podiam acontecer mesmo depois de semanas de ligações bem-sucedidas ao Rest. Durante a preparação do liceu, tinha visto o holograma de um utilizador que se debatia, o corpo teso como aço, em convulsões terríveis. Ao fim de dois ou três episódios, tombava o veredicto. Impossibilidade de se ligar, e os sintomas como herança.
— Não, repulsa não pode ser. Marcello… Estas semanas. Notou alguma coisa? Tremores, olhos abertos? Marcello?
— Não, não. Nada. Nada conclusivo, não. Foi pânico, estás mais nervosa e…
«Nada conclusivo»: que horror. Brísida cerrou as pálpebras.
— Só tens de relaxar — insistiu Marcello. — Amanhã tens nova ligação de interacção e não podes ver isso como perigo.
4
Primeiras impressões: empurrões e cotoveladas num espaço fechado, e um som troante a aproximar-se, que cobria aquele vozear de flauteio. À sua volta, por entre dezenas de cabeças, Brísida conseguiu contar os impulsores: Bartolomeu, Carola, Fernão, Elda. Por uma fracção de segundo, antes que uma viatura se viesse interpor no seu campo de visão, identificou a inscrição «Châtelet», era uma estação de metro. Um mar de gente desceu da carruagem, arrastando-a. As pessoas esbarravam e rezingavam entre si, numa língua que, pelos repetidos «oh là là», depressa reconheceu. Desta vez, estavam no estrangeiro: França. Tentou comunicar a conclusão aos colegas, mas estes já tinham sido empurrados em bloco para dentro de um dos vagões e percebeu, pelo soar do apito, que as portas se fechariam antes que se lhes pudesse juntar. Bartolomeu chamava-a:
— Briside ! Briside !
— Je n’arriverai pas à monter !
Num vislumbre, fixou a expressão desnorteada do rapaz. Como a tinha ele chamado, e o que tinha ela respondido? Porque falavam em francês?
— L’Arc du Triomphe ! — ouviu Bartolomeu gritar.
As portas fecharam-se-lhe na cara e o veículo partiu. A placa com a inscrição «Châtelet» tornou-se de novo visível, na plataforma oposta. Era mesmo isso, estavam em Paris, e Bartolomeu acabara de indicar um ponto de encontro. Um grande número de utentes, sobretudo jovens, ainda ocupava a área. Empunhavam cartazes, discutiam em voz alta. «Mais qu’est-ce qui se passe ?», murmurou Brísida. Sentiu uma vertigem ao ouvir-se de novo naquela língua, e teve de se amparar num senhor que se encontrava atrás de si.
— Voyons, Mademoiselle, il ne faut pas pousser quand même !
Não percebia o que o homem lhe dissera, pois na verdade não sabia falar francês. «Je ne parle pas français.» Mas já do lado esquerdo um grupo de jovens barulhento lançava em coro palavras de ordem. Resolveu tentar usar o inglês para perguntar a um deles por que havia tanta gente na estação.
— Pourquoi y-a-t-il tellement de monde ?
Mas não era possível… Tudo o que queria dizer lhe saía em francês!
— Eh bah, c’est la manif, quoi ! — respondeu-lhe o rapaz, que mascava pastilha elástica. Logo os companheiros, aproveitando o ensejo, subiram o tom das exortações que, em poucos segundos, repercutiam em todo o recinto.
«Eh bah», «quoi»: Brísida não percebia nada daquilo, e a gritaria não ajudava. Dirigiu-se com dificuldade às escadas mais próximas, à procura de uma saída.
À superfície, longe dos tumultos da manifestação, a capital francesa recompunha-se no Rest.2, com os seus edifícios haussmanianos, as avenidas largas, as esplanadas de cafés. A tarde de Verão era de uma luminosidade ofuscante, a fonte da praça resplandecia. Paris fora o seu sonho de infância. Vira dezenas de filmes franceses com o pai quando era pequena, os clássicos, a nouvelle vague, uma ou outra coisa mais burlesca. Apetecia viver nos musicais, mas para isso era preciso saber mover-se com ligeireza, ter voz afinada, aceitar o sorriso de desconhecidos. Estar em cena, como na vida, com um improviso que ou se tinha ou não se tinha. Ela não tinha.
Livre dos colegas, perdeu-se no anonimato ordenado da rua do Rivoli, com um passo firme e elegante, disposta a tornar a cidade sua. Os transeuntes pareciam-lhe mais cosmopolitas do que na realidade eram, e cada loja dava vontade de entrar. Nascera para caminhar em artérias daquelas, espaços rasgados onde se sentia o século XX, e não nas travessas acanhadas e cobertas de uma cidade murada. Ainda assim, depressa constatou que nem ali estava isenta de encontrões. E um rapaz ocioso, encostado à porta de um café, seguia sem pudor a linha de ombros que o seu vestido amarelo deixava à mostra. Estava sempre exposta como uma imagem do exotismo, e aprendera havia já algum tempo que aos olhos dos homens não era uma rapariga, mas uma jovem mulher.
Em busca de maior sossego, e atraída por aquele nome mágico, ingressou no jardim das Tulherias. Mas como era triste na tarde sufocante o corredor central de terra seca, as sombras de árvores cortadas simetricamente, o tanque de águas paradas. Junto à vedação de ferro que resguardava os quadriláteros de relva, um desolador homem de fraque encantava pardais. Brísida caminhou sem rumo, sob os gritos das crianças que brincavam, enquanto via casais passarem de braço dado. Por fim, sentou-se num banco, à sombra. O jardim era a medida da sua solidão. Je suis une maison vide.
*
Obrigadas a descer da carruagem sob o impulso dos passageiros, Carola e Elda não tinham conseguido voltar a entrar, e ficaram apeadas na plataforma da estação Saint-Michel, enquanto o metro partia com os rapazes. As pessoas, ao invés de dispersar, pareciam adensar-se à medida que se aproximavam da saída. Lá fora, em torno da grande fonte, o ambiente era febril. Carola decidiu pelas duas: agarrou na mão de Elda e furou por entre a multidão:
— Viens avec moi.
Elda seguiu, que remédio, deixava-se navegar por bússola. Não imaginava o que fosse uma manifestação, não tinha ponto de comparação, nem supusera que jovens da idade delas pudessem causar aquele barulho ensurdecedor. Apesar de tudo, não se sentia ameaçada. Pelo caminho, tropeçou no olhar de um rapaz de tratos agradáveis, barba de três dias, e ele lançou-lhe um sorriso de fazer disparar o peito que, confusa, quase retribuiu — mas Carola puxava-a com esticões vigorosos. Dali a pouco escapavam ao ajuntamento, já se entrevia à direita a catedral de Notre-Dame. Atravessando a ponte sobre o Sena, encontrariam refúgio na ilha central.
— C’est fou ! — lançou Elda, ainda aturdida da travessia. — On parle français ?
Era raro ver-lhe o rosto aceso. Carola sorriu, acenou com a cabeça:
— Tu comprends ce que tu dis ? — e apontou para a orelha, fez-lhe um gesto de calma; se prestasse atenção, e não se enervasse, encontrava a tradução.
Elda verificou, feliz, que a intuição se confirmava. Trazia dentro de si respostas de que não suspeitava.
— On est des interprètes.
Deambularam pelas margens do rio, a chamarem-se uma à outra «Carole» e «Êldá», em busca das frases mais estapafúrdias, e a arrastar até ao limite aquelas palavras redondas na boca, num exagero. À sua passagem, as pessoas na rua lançavam-lhes olhares, e um rapaz tentou mesmo meter conversa:
— Êtes-vous Françaises ? Vous avez un petit accent…
— Nous sommes Belges — inventou Carola. E, apontando para os turistas que tiravam fotografias da catedral: — En fait, nous sommes les guides du groupe.
Assim que ganharam alguma distância, trocaram um olhar cúmplice e soltaram uma gargalhada. De intérpretes a guias turísticas: Paris fazia-as descobrir as mais variadas vocações. Com o calor, Carola tirara a camisola: Elda não se lembrava de a ver em alças, os ombros nus pintalgados de sardas. Finalmente, baixava as defesas.
Foi quando reparou numa nota de dez francos, no meio da estrada.
— Regarde ! — Elda agachou-se para a apanhar. — C’est notre jour de chance !
Carola concordou. Deviam ir comer alguma coisa, para celebrar.
— Deux crèpes au chocolat, s’il vous plaît — pediu Carola ao senhor de avental. Já que estavam em Paris, era para fazer tudo.
— Ça marche — prontificou-se o vendedor. E, notando uma parecença entre as jovens clientes, perguntou: — Êtes-vous sœurs ?
Carola vacilou como se o chão lhe tivesse faltado, sem encontrar resposta. A brincadeira tinha perdido graça. Não, não eram irmãs; mas falar da irmã era tabu. Elda receou uma viragem na tarde solar. Encheu-se de coragem, esclareceu o homem:
— Non. Juste des meilleures amies.
Disse aquilo com ligeireza, só uma nota lateral, e Carola não se insurgiu. Pela primeira vez, Elda sentiu que não tinha de medir palavras, negociar. Podia agir.
Comeram os dois crepes apoiadas ao balcão da ponte, com os olhos pousados no Sena, a deixarem cair pingos de chocolate no chão.
— Bartholomé avait parlé de l’Arc du Triomphe… — lembrou Carola.
Mas eis que no rio passa um daqueles compridos barcos de transporte a que os Franceses chamam péniche. Um marinheiro de camisa preta avança a pés nus pelo convés, atrai o olhar delas. E é Carola quem tira as palavras da boca de Elda:
— Mais… c’est Flavien !
Da proa, ele observava-as, vertical como um mastro. Nenhuma delas recordava exactamente os seus traços, e à distância não podiam jurar, mas tinham uma estranha certeza: era ele, era Flávio Hirpo. O barco passava debaixo da ponte, desaparecia-lhes da vista.
Desceram logo à margem do rio à procura do impulsor fantasma, mas já não viram barco nenhum. Como se não tivesse passado de uma visão, ou a corrente o tivesse levado.
*
— Saint-Germain-des-Près — respondeu o empregado que servia à esplanada com um ar espantado, como se aquela ignorância fosse imperdoável.
Fernão repetiu baixinho o nome. Era então aquilo um bairro: cafés, livrarias, árvores, a torre da abadia. Sentado à sua frente, Bartolomeu ergueu o copo, un demi, para o chocar contra o seu antes de começar a beber.
— Il doit avoir notre âge — reparou Bartolomeu, enquanto o rapaz enfarpelado acabava de passar o pano pelas mesas. Fernão lançou um olhar distraído ao empregado. Talvez, sim, uns dezoito anos, não mais.
— « Il » n’existe pas, Bartholomé — recordou Fernão. — C’est une projection.
Disse aquilo com olhares receosos: nenhuma reacção da parte do colega. No seguimento da anterior ligação de interacção, Bartolomeu evitara qualquer contacto com ele durante dois ou três dias. Depois, aos poucos, umas quantas frases dispersas, a tensão fora-se dissipando; mas a intimação do rapaz ainda ecoava: «não me voltes a dirigir a palavra». Não tinham falado sobre aquilo, e Fernão não pedira desculpa com todas as letras. Como se pedia desculpa sem trazer o incidente à tona? «És mesmo estúpido.»
De repente, Bartolomeu levou as mãos aos bolsos:
— Ferdinand ! On n’a pas d’argent ! — constatou, aflito.
Também Fernão não trazia uma única moeda. Bem, era o Rest.2, não haviam de ficar a lavar pratos para sempre. E uma solução aparecia sempre.
— On peut vous inviter ? — propôs uma voz que vinha da mesa ao lado.
A rapariga alourada suspendia com um só dedo a taça de café. Um pouco pálida, olhos vivos que pousara em Bartolomeu. Apresentou-se a si e à amiga que a acompanhava, uma morena de franja, visivelmente mais tímida.
— Je m’appelle Ariane, elle est Léa.
— Je suis Ferdinand. Lui, c’est Bartholomé — respondeu Fernão, ao ver que Bartolomeu não se resolvia. Falava para a morena. — On est sorti sans argent…
— Ça arrive — respondeu Ariane, com um sorriso simples, como se todos os dias lhe acontecesse pagar cervejas a estranhos. Era bonita. Contou que vinham de Toulouse, para estudar na capital, primeiro ano da universidade.
Atrapalhado, Bartolomeu replicou:
— Nous venons de Lisbonne.
Ariane pareceu espantada. Des Portugais, ça alors ! Gabou-lhes muito o sotaque. Não sabia nada de Lisboa, imaginava uma cidade de marinheiros. Que contasse mais.
Fernão já se engajara numa conversa com a outra. Muitos sorrisos, muita toleima, mas, a fim de evitar equívocos, logo fizera referência a Lisa, a « petite amie » que o aguardava em Lisboa. E ela? De certeza tinha um exército de « petits amis » que ansiavam por aqueles olhos negros... Léa levava a mão à garganta para sufocar os risinhos, que soavam como gorjeios.
— C’est génial — repetia por sua vez Ariane a cada pormenor avançado por Bartolomeu, e pontuava o seu interesse com empenhados acenos de cabeça. Ele era forçado a descrever um país inexistente, e a rapariga contribuía com palpites, acabava por facilitar-lhe a tarefa. Mas Bartolomeu sentia-se desconfortável. Talvez o facto de se exprimir numa língua que não era a sua? A dada altura, ela tirou um cigarro do maço, e corou ao perguntar se lhe arranjava lume. — Si ça ne te dérange pas…
Bartolomeu socorreu-se do empregado, que passava naquele momento. O rapaz riscou um fósforo, aproximou-o de Ariane com a mão firme. Nenhum sorriso, nenhum comentário, mas uns maxilares imponentes, que não mentiam. Ariane agradeceu, aproveitou para pagar a conta.
— Des collègues organisent une fête. Nous y allons maintenant. Ça vous dit ?
Propôs aquilo com um olhar profundo, que Bartolomeu não conseguiu aguentar. Não sabia o que fazer com as mãos.
— On ne peut pas, on doit y aller — recusou. E, tomando o hipotético encontro com Brísida por realidade, explicou à rapariga: — Une amie nous attend.
— Oui, bien sûr. — Ariane baixou as pálpebras, levemente desiludida. — Une autre fois, peut-être.
Mas claro que ele não tinha nenhum contacto para lhe deixar. Fernão continuava a conversar com Léa, sem embaraços nenhuns, já recebia orientações sobre como chegar ao Arco do Triunfo. E a ele, um convite para uma festa parecia uma armadilha. Qual era o seu problema? Fez um sinal seco ao colega, para indicar que se deviam levantar, e despediu-se de Ariane, sem jeito:
— En tout cas, ça a été un plaisir.
— Oui, ça a été génial — concordou a rapariga, recuperando o sorriso amistoso. Mas Bartolomeu podia ouvir na sua cabeça « Vas-y, dégage, pauvre type. »
*
Briside das cinco às sete.
Desde que deixara o parque, um barulho cadenciado acompanhava os seus passos: duas marteladas ocas, metódicas, em crescendo. Subia a avenida dos Campos Elísios numa inquietação sem motivo. As pessoas caminhavam apressadas ao seu lado, por vezes com um olhar de través. Era importante manter-se direita, conservar a compostura.
O sol batia-lhe de chofre na cara, fazia-a suar, e Brísida chupava o ar abafado da tarde, com uma espécie de náusea. Deitava olhadelas à esquerda e à direita, à procura de um abrigo, e reparava nas crianças sentadas em bancos públicos, de cabeça desprotegida — impensável para ela. Se entrasse num daqueles cinemas? Mas a ideia de fechar-se numa sala escura, sem oxigénio…
Que teria acontecido aos outros? Estariam todos juntos, algures no centro da cidade, no alto da torre Eiffel, ou talvez nas espreguiçadeiras do jardim do Luxemburgo. De certeza que se estavam a divertir, não havia nenhuma razão para não aproveitarem o dia. Só ela era incapaz. Desejara ter a ligação para si? Eles é que deviam sentir que se livravam dela! Não passava de uma estraga-festas.
— Vous vous sentez bien?
As pessoas acudiam ao vê-la cambalear, mas ela avançava, sem bem compreender o que lhe era dito. O martelar incessante que ouvia ganhara realidade, outro sentido: era o ruído do seu coração, uma corrida louca. Um passo, depois outro, esperava conseguir não destoar, mas desmascaravam-na a respiração acidentada, aquele desequilíbrio do corpo, os soluços que a invadiam. Estava sob ataque.
— Au secours, Marcel… — gemeu, num apelo a que o tutor se decidisse a terminar a ligação e pusesse fim ao seu martírio.
A súplica não produziu qualquer resultado. Veio então ao seu espírito turvo a ideia de se valer da pulseira virtual como escapatória. Friccionou o pulso de imediato, mas, mais uma vez, não aconteceu nada; a pulseira não se materializou. Uma ameaça impalpável abatia-se sobre ela; Brísida acelerou como se fugisse a um perseguidor.
Então, a cidade começou a desbotar, a rua tornou-se granulosa. Carros, fachadas, pessoas sem cor. O mundo em tons de cinza.
Era um sintoma.
Correu pela avenida, desesperada. Tinha repulsa, era certo, não tardaria a sofrer um ataque, e seria questão de segundos até despertar no módulo em posição de aranha, a espumar. O fim da sua participação no projecto, uma barreira brusca às suas pretensões de se tornar engenheira do Rest.
E, de repente, foi obrigada a estacar, pois quase embatia numa figura que intersectava o seu caminho, a poucos centímetros de distância. Uma rapariga esguia, de cabelo curto, com uma pilha de jornais na mão:
— Qu’est qu’il vous arrive ?
Tinha um forte sotaque americano, um olhar desarmante, e concedia-lhe um sorriso aberto, de curiosidade, um mero sorriso desinteressado. A princípio, Brísida não soube como reagir. Mas estava num filme a preto e branco, os códigos eram outros, podia encarar a rapariga de frente e retribuir a simpatia. O gesto apaziguava-a, já sossegava a marcha do seu coração. Recomeçou a caminhar devagar, no encalço da personagem, que anunciava a edição do dia do New York Herald Tribune: era o que ela fazia, subia e descia a avenida a distribuir o jornal. Perdera a sensação de vertigem, e, ao baixar a cabeça, saltou-lhe aos olhos o amarelo do vestido que trazia. O mundo ganhava de novo cor, e começava por si.
Ao chegar ao cimo da avenida, junto ao Arco do Triunfo, ouviu uma voz familiar gritar por ela:
— Briside !
— Ferdinand !
Era Fernão, de facto, quem agitava os braços, com aquela descoordenação que lhe era própria. Brísida respondeu com um aceno feliz, como se reencontrasse um amigo caro, e logo divisou Carola, Elda, Bartolomeu.
— Ce sont mes amis — explicou à rapariga de cabelo curto, que observava a cena, e a quem não ousara ainda dirigir a palavra.
— Au revoir — despediu-se ela, com um gesto afectuoso, antes de rodar os calcanhares e recomeçar a descer a avenida: — New York Herald Tribune !
— Au revoir — sussurrou Brísida, agradecida.
E dirigiu-se para junto dos tais seus amigos.
5
Brísida esticou a mão, mas a rapariga adiantou-se, deu-lhe dois beijos:
— Enchantée.
Bartolomeu riu-se da piada, que ela demorou a compreender. Perante a sua confusão, a outra rectificou:
— Estava só a brincar. OK, em português: sou a Lisa. Tudo bem?
Brísida respondeu com um sorriso constrangido. Ainda não se sentia totalmente recomposta das emoções da ligação de interacção, e uma parte de si já se arrependia de não ter ficado em casa naquela noite. Mas não podia ter recusado o convite. Os colegas tinham sido impecáveis ao reencontrarem-na em Paris, naquele estado piedoso, e estava bem consciente de que o seu comportamento prévio não justificava gentilezas. Além disso, era sábado, a alternativa era uma casa vazia. Fez um esforço, disse a Lisa:
— Estou a ver que já sabes da nossa viagem de hoje.
— O Bartolomeu esteve-me a contar. Ainda tem a boca seca de tanto falar francês. Tu?
A namorada de Fernão até era simpática. Custava a perceber o que podia ver naquele rapaz, mas era como se diz: o amor é cego. Brísida trocou algumas frases com ela, apesar da música alta. O Torel não era um sítio insuportável, como receava, mas havia gente por todo o lado. Ainda passaram dez minutos até que Fernão e Carola chegassem à mesa, com as bebidas nas mãos. Recebeu um copo das mãos da colega.
— Obrigada, não era preciso… Quanto te devo?
— Deixa. Cachimbo da paz — e Carola aproveitava assim a ocasião para decretar encerrada a zanga entre elas, como se fosse ela parte ofendida e lhe incumbisse esse direito. Era uma táctica irritante, mas Brísida não podia deixar de lhe reconhecer valor.
— A Elda não vem? — perguntou Bartolomeu.
— Não me parece — e Carola fez um olhar sugestivo. — Os pais…
— E o outro? — Lisa puxou pela memória. — Como é que se chama? Tiago?
— Ah, com esse escusas de contar. — A animosidade de Fernão era notória. — Nunca vem, e também passamos bem sem ele.
— Quem sabe? Noite de concerto. Se calhar ainda aparece.
E Carola perdeu-se logo em lembranças das míticas actuações ao vivo no Torel, que podia compartilhar apenas com Bartolomeu. Felizmente, Lisa equilibrava a conversa. Sem essa presença, Brísida podia imaginar o serão: memórias do liceu que a excluíam e considerações requentadas do trabalho no Instituto.
Quando o grupo subiu ao palco improvisado e as luzes se apagaram, ela resistiu o tempo de uma canção. Depois, foi sentar-se no banco do jardim exterior, a respirar. Passou uns minutos sozinha a reflectir no que vivera nos últimos dias, até que Bartolomeu apareceu ao seu lado. Lá dentro, a batida continuava.
— Não é o teu género, pois não?
— Desculpa, é que estou um bocado cansada.
— A tua irmã? Tens notícias?
— Volta agora no início da semana. — Brísida olhou para ele, que se mantinha em pé. — Obrigada por perguntares.
— Olha… Notei que tu hoje não estavas muito bem no Rest.2… Vê lá, se precisares de alguma coisa. Quer dizer, tu sabes que podes contar connosco, não é?
A voz embaraçada, as mãos nos bolsos. Os rapazes eram todos iguais.
— Senta-te aqui — pediu ela, num tom doce. Bartolomeu acedeu. A lâmpada do jardim expunha o perfil da rapariga como um negativo. — Viste que estive a falar com o Marcello no gabinete depois da ligação, não foi? Há uma coisa. Sabes o que é a repulsa?
— Não é uma doença?
— Criada pelo Rest. Uns ataques feios, já deves ter visto. Deixas de te poder ligar, mas aquilo acompanha-te para o resto da vida.
Bartolomeu ficou apreensivo, demorou a perguntar:
— Sim, vi imagens… Mas tu tiveste um ataque desses?
— Não. Ainda não tive, mas… há uma possibilidade. Digamos que tenho uma predisposição.
— Então devias cortar com isto! Não estás a pensar continuar no projecto, pois não? — O rosto dela não se alterou. — Brísida…
— Se for um episódio só não faz mal, ainda posso parar. Um só não é fatal. Quero ver se consigo controlar. Não te preocupes, Bartolomeu, não faço isto à maluca, e o Marcello está atento. — Seria impensável uma semana antes, mas agora tinha mesmo de confiar no tutor. Aquilo mudava tudo. — Tenho de me adaptar, há certas coisas que não posso fazer: abrir portais é arriscado, o Rest.1 nem pensar. Aliás, vamos ter de quebrar a nossa adesão. Enfim, isso é o menos.
Brísida recuou ao momento de intimidade que tinham vivido no Rest.1. Sentiu que ele se aproximava, lhe pousava a mão no ombro.
— Oh, Brísida… Tenho tanta pena.
« Pauvre type », o insulto fantasma incomodava de novo Bartolomeu.
Ela desviara ligeiramente o rosto, não queria fazer uma cena. Sentia que Bartolomeu a envolvia num abraço morno, estava agora tão perto. Limpou as lágrimas com os dedos e olhou para ele como quem procura uma resposta. Que queriam dizer aqueles olhos fugidios? Que queria ele? Não era capaz de chegar a conclusões, mas não tencionava lutar com mais dúvidas e, num movimento decidido, aproximou-se daquele rosto tenso para beijá-lo.