03

LINHA DE SOMBRA

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Elda
Bartolomeu
Carola
Fernão
Brísida
Tiago
Marcello

1

Carola, Mónica e Tugúbio com torre de Centum Cellas

A torre em ruínas jazia inerte na paisagem: um templo?, uma prisão? Cada lado do edifício rectangular era uma combinação única de pedra e de espaços em aberto, quatro paredes que remetiam umas para as outras de forma incoerente. Carola ingressou no estranho monumento, sentou-se no chão, deixou-se ficar uns minutos de pernas entrecruzadas a olhar para o alto.

Preparava-se para as primeiras frases, que poriam fim ao silêncio do dia.

— Que coisa mais esquisita! O que é isto? — perguntou a voz fina.

— A Torre de Centum Cellas — explicou Carola. — É estranho, hã?

A miúda agachou-se ao seu lado, a avaliar as paredes escaqueiradas.

— Mais do que estranho. Parece que foi feita por extraterrestres.

— Mas não foi, Mónica. É de origem romana.

— Será?...

— Perguntei à avó, não estou a inventar.

Além de teimosa, a irmã sempre gostara de a provocar com perguntas tolas. «Tens de ser inteligente pelas duas», costumava dizer-lhe Mónica, «eu sozinha não vou lá.» E, de facto, quando andavam na escola, Carola redobrava a atenção para depois lhe explicar tudo outra vez em casa, na linguagem delas. A gémea acompanhava essas lições com ar muito compenetrado, mas Carola sabia ler-lhe nas expressões se estava mesmo a segui-la ou não. Às vezes, quando um ponto obscuro se tornava compreensível, o rosto de Mónica iluminava-se de repente e ela dava então sinais de uma grande alegria, como se tivesse ganhado o dia. Porém, poucas semanas mais tarde, já se tinha esquecido de uma regra fundamental ou confundia duas noções de base, e voltava a fazer-lhe perguntas desconcertantes. «A ti a inteligência e a mim a beleza: está muito bem dividido assim.»

À primeira vista eram idênticas. Durante a infância, podiam até passar uma pela outra. É verdade que, com o avançar dos anos, o rosto de Carola fora adquirindo uma seriedade que nunca se chegou a imprimir no de Mónica, o que, sobretudo para quem já as conhecia, veio contribuir para facilitar a distinção. Na última fotografia que a avó lhes tirara pelo aniversário, dois meses antes de Mónica morrer, dir-se-ia que esta era uma irmã mais nova de Carola extremamente parecida com ela.

Era essa irmã mais nova, e agora de quase dois anos mais nova, que Carola reencontrava no Rest.2.

No início, só uma experiência, só para ver, e Carola ainda passara uns dias angustiada sem se decidir se queria ou não queria. Temia ressuscitar uma Mónica diferente, desorientada com as sequelas do electrochoque que a vitimara no liceu. Uma tarde, como quem precisa de arrancar um dente, fechara os olhos e pensara depressa: agora. A projecção da irmã surgira a seu lado, à sombra de uma árvore; muito calma, sem abraços nem lágrimas nem qualquer perturbação pela circunstância, perguntara apenas se também podia ver o cão. Carola reconhecia os modos, a linguagem de Mónica, mais fieís do que os podia recordar, e surpreendia-se até com certos pormenores esquecidos. Como se a tivesse resgatado do passado, ou de certo modo a salvasse da morte, e essa ideia legitimava o desejo. A projecção voltava, às vezes mesmo sem que Carola a invocasse de forma expressa. Limitava-se a ser, e nunca pretendia existir além da ficção.

— Ei, não é hoje o nosso aniversário? — lembrava agora a irmã.

— Não, ainda falta, é no sábado.

— O que vamos fazer nesse dia?

— Combinámos ir à Ria Formosa, lembras-te?

— Ah, pois foi. E à noite? Vais estar com a avó? O Óscar?

— Com a avó, sim. O Óscar anda lá para o Norte, Mónica, já te disse. Agora é um noctívago. Já te contei isto tudo ontem.

Continuava uma cabeça de vento. Não sabia por que a deixava repetir todos os dias as mesmas perguntas, visto que naturalmente estaria em seu poder modelá-la — enfim, modelar a projecção. Suportava com bonomia aquela tagarelice, que outrora a teria exasperado. Mónica ainda era uma criança.

Levantaram-se para dar um passeio. A irmã, agora mais baixa do que ela, marchava a seu lado, continuava a fazer perguntas:

— Vais convidar o Bartolomeu para ir jantar lá a casa no sábado?

— Eu queria, sim. Se o Marcello deixar… Já te disse, agora o Bartolomeu, coitado, mudou-se para casa dele, de armas e bagagens.

— Coitado porquê ? Se calhar, fica melhor.

Carola ignorou o comentário. Mas Mónica voltou à carga:

— E a tua nova amiga, não a convidas para sábado?

— Qual amiga?

— A Elda. Não é tua amiga?

— Sim, acho que é. — Carola parecia hesitar. É verdade que era a pessoa com quem mais tempo passava agora no Instituto. — Mas… não sei, acho que não faz muito sentido. E não tenho a certeza de querer uma amiga agora.

— Que disparate. Toda a gente precisa de amigos, Carola.

Quatro patas velozes passaram ao seu lado, assustando Mónica:

— Faltavas cá tu, seu maluco. Tugúbio!

 

*

 

Afinal, garantia Bartolomeu, enquanto a acompanhava à saída do Instituto, não havia motivo nenhum para suspeitar do tutor: Marcello contara-lhe histórias da infância em Nápoles, dos estudos na Dinamarca, da adaptação a Portugal. Desde que se mudara para o apartamento da praça de Londres, o amigo chegava a cada dia ao Instituto com uma novidade diferente. Marcello sabia cozinhar pratos de massa deliciosos. Marcello queria compreender melhor a história de Portugal. Marcello começara a ensinar-lhe italiano.

— Olha, até me pediu ajuda para melhorar o português.

— Vais ter trabalho…

Bartolomeu sorriu, despreocupado.

— E arranjou-me um quarto como deve ser. Nunca tive tanto espaço.

— Mas a situação não te chateia? Ele deixa-te em paz?

— No início achava que ia tentar controlar-me — admitiu o rapaz. — Armar-se em figura paternal ou qualquer coisa desse género. E é verdade que tem idade para ser meu pai. Mas parece mais jovem, talvez por ser assim um bocado… um bocado atabalhoado, não é? Não sei, ele é fixe, é… quase como um irmão mais velho.

Carola não disse nada, mas a descrição irritou-a. Em momentos assim, Bartolomeu parecia-lhe ingénuo. Os rapazes eram sempre mais tolos.

— E tem uma biblioteca imensa, havias de ver. Como a da tua avó, quase! — disse Bartolomeu. — Montes de livros, em línguas diferentes.

— Oh! Estás a gozar… A sério? Onde é que os foi arranjar? Achava que ele estava em Lisboa há pouco tempo.

— Pois, isso não sei. Talvez alguns já estivessem no apartamento, mas outros são mesmo dele. Olha, emprestou-me um — e Bartolomeu tirou da bolsa um volume fino, exibiu uma capa a cair aos bocados, onde mal dava par ler o título O Estranho Caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde. — Só deste há para lá montes de edições, deve ser uma panca qualquer. Não sei, acho que ele tem uma cultura humanista.

Carola não conteve uma gargalhada.

— Sim, está-se mesmo a ver! Parece-me que tu andas um bocado baralhado, Bartolomeu. O teu literato trabalha para a agência que quer fazer de nós autómatos. E à noite vai ler livrinhos…

— Carola, eu… Talvez tenhas razão quanto à Bóreas, mas ele não é assim. Acredita, ele interessa-se, também perguntou coisas sobre ti.

— O quê?! Que coisas?

— Oh, nada de especial. Como é que nos conhecemos, se as nossas famílias se dão. Falei-lhe das aulas que a tua avó me dava no grémio. Olha lá, é normal ele querer saber… Tu também estás sempre a dar-lhe com os pés. — E agora Bartolomeu sabia que tocava num ponto delicado, mas por lealdade não podia omiti-lo: — Perguntou pelo teu irmão… e pela Mónica…

Ela não gostava de falar sobre a gémea, mas desta vez a reacção ainda foi pior. Estacou a marcha e olhou-o com indignação, como se o acusasse.

— Ele fez-te perguntas… e tu? Sobre a Mónica? E o Óscar, também? Mas com que direito? Para saber onde ele anda. E tu respondeste?

— Não foi assim, já disse — reiterou Bartolomeu. — Ele sabe que a Mónica morreu, que o Óscar é um noctívago. Toda a gente sabe isso. Perguntou para te perceber melhor. Passou um mês e tu continuas na tua, fechada, não te dás com ninguém…

A rapariga calou-se. Para Bartolomeu parecia tudo tão fácil. Via-o meter conversa com os colegas, tornar-se amigo de Fernão, de Brísida, até entrar em confidências com o tutor. E ela que contara com atenção exclusiva no projecto…

— Parece que ainda não aceitaste que estás aqui. — O rapaz amaciava a voz para a alcançar. — Mas estás. Eu sei que isto é difícil para ti, mas trabalhas para a Bóreas e não podes fazer nada quanto a isso.

Isso é o que tu julgas, pensou Carola.

 

*

 

Não fora assim que Dara Jurado educara a neta, mas agora, todas as noites, havia aquele momento de vago mal-estar em que nenhuma das duas ousava dar nomes às coisas.

Dara era objectora, nunca se ligara ao mundo virtual. Tinha ideias bem definidas sobre o Rest e, ao longo dos anos, acautelara os netos para desconfiarem de paraísos artificiais. Por isso, a insólita convocatória da Bóreas para que Carola participasse no projecto fora para ambas um golpe perverso, uma ironia de mau gosto. O tema tornara-se tabu entre elas. Nunca falavam do tempo passado pela rapariga no Instituto. Era como se só a vivência naquela casa tivesse plena existência.

A avó percebia, com toda a certeza, que as perguntas sobre geografia que lhe eram dirigidas nos últimos dias estavam relacionadas com as ligações ao Rest.2. Porém, dava as suas explicações sem tocar no assunto. Trabalhara toda a vida como formadora: não lhe faltava pedagogia. E aquelas conversas eram uma das formas de contornarem o impasse criado.

— Havia uns casebres de pescadores, mas tirando isso as ilhas da Ria eram desertas. Apanhava-se um barco nos centros urbanos: em Faro, ou em Tavira — explicava na sua voz pausada, sentada na poltrona da mezzanine. — Eram só bancos de areia, mas, em algumas, ainda havia bastante vegetação. Oh, nem quero pensar como há-de estar agora…

Em momentos assim, Carola perguntava-se com incómodo quando é que Dara se transformara numa avozinha convencional. Toda a vida lhes proporcionara um ambiente estimulante, tanto a ela como aos irmãos. Tinham crescido rodeados de pessoas de convicções fortes, um grupo de intelectuais que participara de forma activa na contestação ao Conselho, desde o início dos anos 70, em pleno caos. Os convidados falavam livremente, denunciavam o rumo seguido nas últimas décadas pelos países europeus do Bloco, a política das cidades muradas, questionavam a legitimidade do poder que os governava. Nem sempre eram conversas fáceis de seguir, mas era raro que Dara pedisse aos netos para deixarem os adultos falar sozinhos.

Nos últimos anos, todavia, os serões tinham-se tornado raros, os amigos foram deixando de aparecer. Depois da morte de Mónica, Óscar partira para o Norte. A casa de família, onde Dara criara duas gerações, tornara-se demasiado grande só para as duas, cheia de silêncios. E a avó fora perdendo aquela força que os electrizava quando eram mais novos, adoptara uma cautela na forma de se exprimir, como se agora os excessos lhe parecessem censuráveis. Carola não podia aceitar essa mudança.

— Ah, ia-me esquecendo. A Filomena disse que alguém telefonou para ti — revelou Dara, enquanto penteava com as mãos a madeixa branca. — Voz de homem.

— Deve ser o Roberto. Tinha ameaçado ligar.

A avó riu-se. Um colega infeliz que passara o último ano do liceu a rondar a casa, chegara a propor casamento a Carola, talvez para escapar à atribuição no interior. Esta vira-se forçada a imaginar mil modos de dar-lhe com os pés.

— Ainda não arranjou outra paixoneta? — perguntou Dara.

Carola sorria, com um ar distraído, mas o coração disparara. Felizmente, preparara com antecedência aquela desculpa do Roberto. Oh, como queria não ter de passar pela vizinha para receber os telefonemas! Mas Filomena era a responsável pela central do quarteirão, não havia como escapar.

 

2

As arcadas do claustro ainda eram bem delineadas, mas bastava levantar a cabeça, e qualquer ilusão se desvanecia. Linhas rectas, sem ornamento nenhum, faziam as vezes de frisos. Se não soubesse que ali em cima ficava a janela manuelina, nada denunciaria o convento. Claro, havia sol, uma sensação agradável de calor na pele, mas o protótipo de base não convencia, era só uma reprodução imperfeita.

— Nós chamamos a este mundo Rest.1, para distinguir do novo — explicou Carola ao homem que caminhava a seu lado. — E de facto não tem nada que ver. Aqui é tudo tão rudimentar, vê-se logo que é falso. O nosso…

— O vosso é tão falso como este, ou ainda mais.

Virgílio retorquira de imediato, num tom pausado mas firme, sem sequer olhar para ela. Continuava a caminhar, nas calmas, enquanto levava o cigarro à boca. Como sempre, era difícil decifrar a expressão daquele rosto crispado, a que os óculos escuros conferiam neutralidade. Respostas daquelas desarmavam-na, e Carola tinha de controlar o ímpeto de pedir desculpa.

Como era óbvio, ele não podia aceder ao Rest.2, reservado aos impulsores, por isso tinham combinado encontrar-se ali. Escolhera Virgílio o local, e Carola fora procurar na biblioteca do grémio um livro sobre o Convento de Cristo, para não ir às escuras. Ele tratara previamente do processo de adesão entre os fantasmas dos dois, requisito de que ela nem estava a par. Fora Brísida a explicar-lhe: o passo era necessário para qualquer encontro no Rest.1, que não fora concebido para interacção. Sem isso, a ligação originaria um fenómeno de atrito: os dois fantasmas achar-se-iam no mesmo local ao mesmo tempo, mas sem qualquer possibilidade de contacto entre si. A situação parecia inimaginável, mas havia vários registos que a atestavam.

Para ela, tudo isso continuava a ser ficção científica.

Recorrera a Brísida, dias atrás, para lhe pedir que a ensinasse a abrir e fechar um portal, de modo a transitar do Rest.2 para o Rest.1. A outra fizera logo má cara, e Carola justificara-se com a vontade de se reunir, no dia do seu aniversário, com Óscar, o irmão que não via há imenso tempo. Que um noctívago tivesse acesso a um módulo de ligação seria motivo de sobra para levantar suspeitas, mas nem foi isso a tornar a colega pouco receptiva à ideia. Brísida avisara-a de que não era uma operação para ser feita com ligeireza; e sublinhara, com certo ar de superioridade, que não estava autorizada a divulgar informações que pudessem prejudicar o projecto. Mas acabou por explicar-lhe como proceder, insistindo para que não se esquecesse nunca de fechar um portal aberto.

Carola não compreendia o processo; limitara-se a memorizar os códigos e a inseri-los na pulseira virtual. O que lhe interessava era o encontro daquela manhã.

Não via Virgílio Neto havia anos. Fora o melhor amigo do seu pai, um homem afável e expansivo, habituado a subir aos palcos mascarado de Otelo nos saraus do grémio. Quando Pedro Jurado era vivo, Virgílio frequentava a casa como um parente, e fascinava os miúdos com um grão de loucura que compensava a melancolia paterna. Ademais, trazia consigo uma filha de vinte anos, belíssima, espigada, capaz de defender as opiniões mais inusitadas com argúcia e sentido de humor. Logo Analisa se tornara o modelo das gémeas, a primeira paixoneta de Óscar. Um dia, a rapariga fugira de casa, Carola vira Virgílio envelhecer trinta anos. Num curto lapso de tempo, morria o seu pai. E o amigo extravagante, que lhe descobria tostões atrás da orelha, desapareceu de circulação, envolto em boatos. Depois, também ela cresceu, o mundo avançou.

O primeiro contacto da parte dele, passado um tão longo período, deixara-a perplexa. Sabia que andava fugido, e notou que media as palavras ao telefone. Sondava-a, para averiguar da sua receptividade a um reencontro, ela afirmara logo que tinha interesse. Fazer aquilo às escondidas da avó, que conhecera Virgílio de perto, não lhe agradava, mas compreendia que as precauções eram necessárias. Um fim de tarde, no grémio, uma mulher aproximou-se dela, com três frases em surdina inteirou-a do plano. Pareceu-lhe irónico que usassem o Rest para se encontrarem. Marcello não sonharia.

— Ele não nos explica nada, é tudo secreto! — continuou Carola, quando Virgílio lhe voltou a perguntar pelo tutor. — E os outros, também… Olha, tive de ser eu a perguntar de que morreu o Flávio Hirpo. Estávamos todos convencidos de que tinha sido por causa do Rest.2, mas ninguém ousava abrir a boca.

— E então? O que é que ele vos respondeu?

— De ataque cardíaco. Mas… tão novo?! Pode acontecer?

— Poder, pode. — Mais uma vez, a entoação dele não revelava nada. Depois, sem transição, perguntou: — Que diz a tua avó deste projecto?

— Não fala, é como se não existisse. Ou melhor, o trabalho no Instituto está sempre presente, mas não posso fazer a mínima alusão ao meu dia, nem posso mencionar a palavra «Rest» que ela começa logo com caras…

— Isso não é muito justo.

— Eu sei, é como uma punição, e por uma culpa que eu não tenho. Mas se lhe falo de acções contra a Bóreas também levanta o sobrolho.

— Como assim, acções contra a Bóreas?

— Sei lá, às vezes ponho-me a divagar… Coisas como o GRUPO.

— Ah, sim? E que sabes tu disso? — perguntou ele, e Carola julgou ver formar-se-lhe um vago sorriso.

O GRUPO, Guarda de Rebeldes Unidos contra o Poder Oligárquico, era uma organização radical que reunia antigos elementos de oposição ao Conselho, agora na clandestinidade. Actuava na sombra, sobretudo fora das muralhas, e em coordenação com outras células europeias. Mas havia infiltrações na cidade, e alguns especialistas no mundo virtual faziam jogo duplo. Uns anos antes, soubera-se de atentados contra a Bóreas, mas, como sempre, as informações haviam sido abafadas. Carola tentou a sorte:

— E tu fazes parte, não é? Lembro-me de que se falou quando desapareceste.

— É natural que a tua avó não te queira ver envolvida com o GRUPO. Dantes éramos considerados resistentes, agora pintam-nos como terroristas.

— Não é isso, é que ela acha que há outras formas de resistência. Quero dizer, ela continua muito activa a nível social, dá aulas gratuitas, promove campanhas. Mas é contra qualquer forma de violência.

Passou um novo momento até que Virgílio reagisse, com a voz rouca que o tornava levemente sedutor:

— Sabes como se chama este claustro? Claustro da Micha. Micha quer dizer migalha. E sabes porque é que se chama assim? Porque era aqui que distribuíam o pão aos pedintes. — Ela olhou para as arcadas à sua volta. — Estás a ver, Carola, ao povo sempre estiveram destinadas as migalhas. Era aqui que os senhores queriam a ralé. Como servos obedientes, a pedir migalhas nos intervalos do trabalho. Diz-me lá, onde está a violência?

Carola engoliu em seco. Virgílio prosseguiu:

— O que a Dara propõe não é muito diferente, no fundo são migalhas. Nunca nenhuma grande conquista social se fez sem luta, sem sangue. Depois, todas as revoluções vêm a ser incorporadas no discurso do poder. 1383, a Revolução Francesa, a Russa: todas traduzidas por expressões inofensivas como «os ventos da História». Neutralizadas, como se não fossem fruto dessa luta, desse sangue. Como se os reis um dia se tivessem sentado à mesa e decidido inscrever direitos para os povos nas constituições. Mas essa é uma bela fábula, como tu sabes.

— É claro que sei, concordo contigo — replicou Carola, com veemência. — E também sei que nos últimos anos… com estas desculpas de vivermos uma situação excepcional, o poder de uns aumenta e os direitos, os direitos de todos… são tidos por regalias… postos em causa, limitados… eu penso como tu!

Carola sentia-se exaltada, não conseguia exprimir-se. Por norma, era ela quem dava a ver com clareza a ordem das coisas a amigos indiferentes.

— Ouve, o que eu quero dizer — retomou a jovem, à procura de palavras simples — é que há pessoas, como a minha avó, que não estão alheadas, mas que ainda acreditam que o Rest poderia ser utilizado de outra forma, uma forma benéfica para todos. Isto é a teoria. Já eu… eu acredito que o Rest é e será sempre um instrumento de alienação. Como uma migalha atirada ao povo, é isso. Penso como vocês. Não sei se posso afirmar que sou uma neoludita, como vocês dizem. Mas, pelo menos, quero ser.

Disse estas últimas palavras com humildade, e isso fê-la ganhar confiança em si. Virgílio manteve-se calado por um momento, parecia reflectir. Sem saber porquê, Carola pensou em Analisa, e quase teve vontade de lhe perguntar se tinha notícias da filha fugida. Mas então Virgílio, num gesto lento, retirou os óculos escuros e olhou na sua direcção.

— Não te assustes. É só para perceberes que isto é a sério.

Era impressionante : tinha o globo ocular esquerdo completamente branco e o direito bastante afectado. Carola sentiu-se mal, como se estivesse para desmaiar.

— Fiquei assim num atentado, há cerca de um ano. Só tenho vinte por cento de visão do olho direito. No mundo real, claro. Aqui, como calculas, posso ver o que quiser. Já deves ter ouvido outros casos de cegos que recuperam a visão no Rest. Mas não me interessa se conseguem dar-me essa ilusão. Porque, se eu acreditar nisso, então é que perco a vista, e é pior, porque abdico dela de forma voluntária. Percebes?

— Percebo — disse sem hesitar. Estava a recuperar o controlo. — Essa também é a minha lógica. E posso ajudar, agora que estou lá dentro. Só tens de me dizer como. — Virgílio ia para alçar uma mão, mas ela não o deixou interrompê-la. — Não sou parva, sei bem que se me contactas agora é porque tens interesse nisso.

— Tens razão. Nem eu te tentava fazer passar por parva. — O homem fixou nela os olhos brancos, depois repôs os óculos sem pressas. — Fazes-me lembrar o teu pai. Ouve, acredites ou não, somos uma estrutura modesta. Termos alguém nesse projecto é quase um milagre. O momento é crucial, tu bem vês que as coisas estão a mudar. Mas noventa por cento deste trabalho assenta no método, não te deves empolgar. Por enquanto, só precisamos de informação, o que nos quiseres contar. Virá uma altura em que talvez possas contribuir de outra forma. Tudo a seu tempo.

Carola anuiu, vagamente defraudada, e Virgílio rematou:

— Se estiveres de acordo, podemos continuar a encontrar-nos aqui.

 

3

Mosquitos atarantados zumbiam em seu redor. Carola fechou os olhos e pensou: Agora não. O sapal tornou-se um recanto de paz, só o debicar dos maçaricos no lodo perturbava o silêncio. Encostou-se a uma duna e deixou o corpo fundir-se na areia.

Tugúbio veio sentar-se ao seu lado, pôs-se a lamber-lhe as mãos com aquele ar muito compenetrado que a fazia sorrir.

— Achas que eu sou uma pessoa horrível? — perguntou, enquanto lhe acariciava o focinho.

— Agora falas com o cão? — Era Mónica.

Aparecera de repente, sem aviso prévio. O momento não era oportuno, mas como renegar a projecção da irmã?

— Parabéns! — exclamou a miúda. — É hoje o nosso aniversário, não é?

— Ó Mónica, outra vez! Já te disse — mas interrompeu a censura. Era, de facto; a semana passara a correr. — Pois é! Desculpa, parabéns. Já viste que fazemos…

Carola não completou a frase. Na verdade, só ela completava dezassete anos, Mónica continuava com quinze. Sem ligar, a irmã perguntou:

— Estamos na Ria Formosa?

— Estamos? Olha, pois estamos! — Cumprira sem se dar conta a promessa que lhe fizera. — Sabes quem convidei para ir jantar lá a casa esta noite? A Elda!

— Ai sim? Achava que não te apetecia…

— Tinhas razão, estava a ser parva. Nem percebo por que é que hesitei.

— E o Bartolomeu?

— Não vem. Uma estupidez, o Marcello não deixou. Como se o perigo fosse eu… Também ele não pareceu muito importado com isso — constatou, com um encolher de ombros. — Tinha uma coisa para fazer, não disse o quê.

— Não podes ser só tu a ter segredos.

Demorou a interpretar a frase. Aquilo era um bocado assustador: Carola não contara nada a Mónica do encontro com Virgílio. Ainda lhe custava apreender a dinâmica daquela relação virtual, mas era óbvio. O que a irmã sabia ou não sabia dependia sempre de si própria. Que recordação teria guardado a verdadeira Mónica de Virgílio? Pergunta inútil.

O sol raiava. O ideal seria procurarem um barco que as levasse às ilhas, pensou. Estava mesmo dia de praia, estender-se na areia era o que podiam fazer de melhor. Mas não se levantava.

— Não estou a fazer nada de errado. Não penses que me sinto culpada ou com dúvidas.

— Eu só acho que devias falar disso à avó — respondeu Mónica, pondo-se em bicos de pé para se espreguiçar. O sol batia a pique nos braços cheios de sardas da gémea. Como os seus, mas naturalmente um pouco mais pequenos.

— Ela não ia perceber, sabes como é. E eu agora… Eu agora já sou mais velha. Não vou estar a pedir licença à avó para fazer o que me parece justo. Tenho idade para decidir.

 

*

 

— E tu, Elda, quando estás no Rest.2… o que é que fazes?

— Eu… Ainda é difícil para mim. Há tanta coisa… nem sei por onde começar…

Carola, a seu lado no tapete móvel, lançou-lhe um olhar significativo. Se estavam mesmo a tornar-se amigas, ia ter de fazer um esforço para responder melhor.

— Olha, se queres saber — decidiu-se Elda —, não é muito esperto, mas parto sempre do que já conheço. Quer dizer, volto a sítios que foram importantes para mim, a momentos… é como se voltasse a viver as coisas, uma segunda vez. Percebes?

— Hum. Por exemplo… tens estado com ela? Com a tua irmã?

Desde que se criara aquele mal-entendido na praia de Odeceixe, Elda procurava esquivar-se ao assunto, sem saber como clarificar que Cinira não era sua irmã, mas sim prima, e que não tinha morrido, mas simplesmente se afastara. Na verdade, porém, Cinira era para ela como uma irmã, e o Abnego era uma reclusão quase definitiva, uma espécie de fim… Deixou-se outra vez enrolar naquela história.

— Ela fez-me jurar que não faria isso, que não ia recriar nenhuma projecção dela — explicou Elda, e essa parte pelo menos não era mentira. — Foi o último pedido que me fez, antes de… Ela era como tu, um bocado contra o Rest….

Carola sorriu, apontou para o fundo do corredor.

— É aquela casa ali. Estás a ver, a amarela?

A moradia tinha perdido a cor e o peitoris de pedra encontravam-se escacados. Mas ainda era uma casa bonita. E o bairro bem cuidado, àquela hora algumas lojas continuavam abertas. O pai de Dara batera-se para manter Campo de Ourique no tracejado da cidade habitável, à custa de doações importantes.

Mal empurrou a porta de entrada, Carola foi surpreendida por uma ovação, e um grupo numeroso começou a cantar-lhe os parabéns.

A avó tinha preparado uma festa, como antigamente!

— Tu já sabias! — concluiu Carola com um sorriso feliz, enquanto Elda pegava no casaco da amiga.

Dara, no seu vestido colorido, veio abraçá-la e, por sobre o seu ombro, Carola distinguiu vizinhos, amigos do liceu, os colegas do Instituto — e até Marcello, que a saudou de copo na mão. Alguém pusera um disco a tocar. Fernão identificou com espanto os primeiros acordes de um tema dos Beatles. Junto dele, Brísida mostrava-se impressionada com o imenso espaço da divisão de dois pisos, enquanto Bartolomeu, que era da casa, já se aproximara de Carola, a sorrir.

— Achavas mesmo que ia falhar a tua festa de aniversário, Cenoura?

— Com que então tinhas uma coisa para fazer esta noite…

Sentia-se radiante. Havia muito tempo que aquela sala não se enchia de gente. O dia seguinte era um domingo, podiam ficar até tarde. E, enquanto Bartolomeu cumprimentava antigos colegas, Brísida foi falar com ela:

— Parabéns, Carola! A tua avó sabe mesmo como organizar uma festa.

— Obrigada, Brísida. Que bom que vieste.

— Encontraste-te com ele? — perguntou-lhe ela então, em voz baixa. — Com o teu irmão? Não houve problemas, fechaste o portal?

Carola abanou a cabeça, com os olhos muito abertos. Que maçada, aquilo… Mais pessoas queriam cumprimentá-la, disse-lhe, mas voltaria daí a nada.

— Os ambientes modificam mesmo as pessoas… — comentou Brísida pouco depois, quando apanhou Bartolomeu novamente sozinho. — Olha para isto.

— Pois. Mas falta cá uma pessoa.… — Ele fez um sorriso afável.

— O Tiago, como sempre. Foi convidado, não veio porque não quis. Ei, olha para o Marcello! Ainda vais ter de o levar para casa aos ombros…

O tutor, muito animado, recebia outra bebida de Dara. Riram-se os dois.

— Amanhã consegues livrar-te dele? — perguntou Brísida.

— Vou almoçar com os meus pais. Já não os vejo há uns dias…

— Ah… se depois quiseres fazer alguma coisa, lá mais para a tarde…

— Acho que amanhã não vai dar. Já tenho planos.

— Claro — e ela esboçou um sorriso constrangido.

Entretanto, Elda surpreendera Marcello numa discussão com Dara.

— Paul McCartney, o melhor compositor?! Como é que o Marcello pode dizer uma coisa dessas? É óbvio que era o John Lennon!

— «Eleanor Rigby»! — ripostou Marcello, a agitar muito as mãos, como se demonstrasse uma evidência.

Elda não percebia nada do que estavam a dizer. Não sabia para onde se dirigir, mas, ao ver pessoas nas escadas, depreendia que fosse permitido subir à mezzanine. Aí, junto ao gira-discos, Fernão consultava, agachado, as prateleiras de LP de Dara.

— A velhota tem aqui uma colecção preciosa — comentou o rapaz.

— Ela e o Marcello estão lá em baixo a ter uma discussão que te poderia interessar — ousou dizer Elda. — Sobre qual é o melhor dos Beatles, acho.

— Ringo Starr. Um génio. — Fernão desfez-se num sorriso malicioso, sabia de antemão que Elda não perceberia a piada. Mal girara a cabeça para responder, mas a voz era amistosa. Ela ficou em pé, sem saber o que fazer.

— Podes sentar-te no sofá. Não mordo.

E disse-lhe aquilo com um piscar de olho inesperado. De vez em quando ele conseguia ser adorável. Porque é que não era sempre assim?

Do compartimento onde se encontravam, podia ver-se toda a sala. Fernão aumentou o volume da música. As pessoas começavam a mexer os corpos instintivamente. A um canto, Marcello refreava o impulso para dançar, e Elda não pôde conter um sorriso.

Carola tomara a iniciativa de ir falar com o tutor, que pareceu embaraçado.

— Tens casa muita bonita. A tua avó mesmo é simpática. E boa música!

— Obrigada. É bom vê-lo aqui.

— Sim? Não sabia se tinha de vir… — e, enquanto procurava o auxiliar adequado, corrigiu-se, numa atrapalhação: — … quero dizer, se devia. Se ias querer, em suma. Que eu estava cá. Estás a ver?

— Esse «estás a ver» já me parece influência do Bartolomeu — notou Carola.

O riso de Marcello confirmou a sugestão, e Carola não tardou a acompanhá-lo numa gargalhada.

Era como se fossem todos amigos.

 

4

Assim que abriu os olhos, Carola compreendeu onde estava. Reconhecia a janela manuelina, mesmo se os rendilhados oscilavam e a própria igreja apresentava contornos toscos, como um esboço. Era dia de ligação de interacção, devia estar no Rest.2, mas era óbvio, à vista daqueles efeitos esfumados, que tinha sido enviada de novo para o modelo de base.

Girou a cabeça, à procura dos companheiros, sem ver nenhum. Alguma coisa estava errada. A qualidade de reprodução do Rest.1 era elementar, mas desta vez a realidade mal se conseguia definir. Um forte nevoeiro submergia as duas cruzes no topo da fachada, parecia fazer a matéria esboroar-se. Carola deu a volta ao edifício e avançou pelo terraço, enquanto chamava os nomes dos colegas. Quando quis voltar ao ponto de partida, já o espaço que deixara às suas costas se desintegrara, como que engolido pelo vazio. Então, num pavor, percebeu o que se passava: na véspera, ao regressar ao Rest.2 após o encontro com Virgílio, esquecera-se de fechar o portal da transição. À pressa, friccionou o pulso até ver surgir a pulseira, e inseriu o código que lhe deveria permitir regressar ao modelo avançado. Mas não resultou.

Fernão despertou depois de uns minutos de inconsciência. Não compreendia por que estava sozinho, nem por que a realidade era mais desfocada do que de costume, mas decidira não se preocupar com anomalias. Seja, disse para si mesmo ao ver-se naquele forte, ou castelo, submergido pela névoa; isto vem mesmo a calhar. Não ia ficar a olhar para uma janela; pôs-se a explorar o complexo arquitectónico, um mundo infinito que o Rest.2 teria criado para os confundir. Abriu portas, atravessou salas, desceu escadas — mas, à medida que ia avançando, as fachadas ondulavam. E, de cada vez que virava a cabeça para trás, apercebia-se de que o caminho percorrido já perdera a consistência, como se uma ameaça seguisse no seu encalço.

Elda olhou para a janela, um pouco atarantada. Os motivos marítimos e as cordas torcidas pareciam prontos a dissipar-se de um momento para o outro. Chegara ali sem saber como. O seu fantasma ter-se-ia perdido? Uma estranha substância gasosa abatia-se sobre o terraço, e ouvia cair pingos de humidade, grossos como chuva, no claustro do piso inferior. Tiritava de frio. Não lhe restava senão esperar que o tutor a resgatasse, ou que um colega emergisse do nevoeiro.

Bartolomeu reconhecera a janela do Convento, sabia onde estavam; Brísida, a seu lado, reconhecera aquele efeito de realidade que se desvanecia, tinham transitado do Rest.2 para o Rest.1.

— Alguém abriu um portal — deduziu ela, enquanto juntava as peças na cabeça, e teve de controlar a raiva. Fora Carola, de certeza; aquela irresponsável fizera-os atravessar a todos ao mesmo tempo. Como lidar com as consequências? Tinha de pensar depressa, para não assustar Bartolomeu. — Podes dar-me só um minuto?

— Mas os outros, onde estão? — insistiu ele, como se não prestasse atenção. — Ou viemos sozinhos?

— Não, eles estão aqui. Em frente a esta janela, por incrível que pareça. Mas num plano diferente: nós não os vemos, e eles não nos podem ver a nós. Atrito.

Bartolomeu coçou a cabeça. Aquilo custava a conceber.

— Espera… E nós os dois? Como é que acabámos juntos?

— Temos adesão no Rest.1 — lembrou ela. — Vila Nova de Cerveira?

Bartolomeu recordou a excursão em conjunto, a reprodução grosseira, a sensação de frio. Mas a experiência não era comparável.

— Da outra vez, não havia este nevoeiro esquisito — notou o rapaz.

— Eu sei. Ouve, isto não é bom: o Rest.1 não consegue acolher tantos fantasmas ao mesmo tempo — alertou ela. A reacção estava à vista, o mundo reproduzido naquela ligação não tardaria a ruir. — Temos de voltar para o Rest.2.

           

*

 

No interior do edifício, o mundo parecia mais estável. Bartolomeu observava o prisma central, em busca dos mínimos sinais de alteração.

— Achas que é altura de te pores a olhar para isso? — perguntou Brísida.

Nunca sentira tanta tensão na voz dela, e isso deixou-o inquieto.

— E o Marcello? Porque não faz nada?

Brísida impacientou-se. Já lhe explicara que a situação escapara ao controlo de Marcello: o tutor nunca teria enviado cinco fantasmas para o Rest.1. Se pudesse, já os teria puxado a todos de volta. Mas só tinha uma escolha, não poderia abrir um portal por cada plano. Ao salvar um, praticamente condenava os outros.

Bartolomeu procurava alternativas, a ideia genial que escapava aos especialistas:

— E se ele decidir terminar a ligação? Voltamos para os módulos, não é?

— É o mal menor. Nós voltamos, mas os nossos fantasmas ficam presos aqui, no Rest.1. Podemos dizer adeus ao Rest.2.

— Adeus, como?… Para sempre?

O rapaz ficou imóvel, a considerar o fim da participação no projecto. Ela não respondeu, limitou-se a apontar para o tecto da sala, que vinha agora sendo substituído por uma nuvem branca.

— Se esta névoa absorve os nossos fantasmas, estamos feitos. Nós mesmo, percebes? O nosso cérebro, no módulo, pode sofrer danos irreparáveis. — Ela dirigiu-se para a entrada principal, continuou a explicar enquanto tentava empurrar a porta pesada. — Nem percebo do que está ele ainda à espera. No Rest.1 não nos pode ver, mas conhece o perigo.

Bartolomeu ficou de boca aberta, incapaz de assimilar a informação.

— Ajuda-me aqui — gritou ela, e só então ele se apercebeu dos esforços da colega.

Quando a porta cedeu enfim, desceram os degraus para o terreiro a correr. A temperatura estava mais fresca lá fora, e a névoa adensara-se. Bartolomeu avançou em pânico pelos jardins, enquanto gritava por ajuda, em vão.

Brísida sabia que não podia esperar mais. A pouco e pouco, tudo se ia dissolvendo, como se o Rest.1 não tivesse reservas para recriar mais ambiente além do Convento. Porém, com a precipitação, Bartolomeu separara-se da colega.

— Não se vê nada! — queixou-se ela. — Onde estás?

Bartolomeu avançava por entre a claridade baça que invadia tudo. Aqui e ali ainda assomavam uns toques de verde que se podiam identificar como árvores, mas progressivamente também esse resto de matéria se extinguia. Porque se afastara? Voltou a chamar o nome de Brísida. A humidade era tão intensa, que em poucos segundos estava encharcado. Ia ficar preso ali, pensou, não voltaria a nadar.

Ao longe, Brísida respondia aos apelos do colega e procurava seguir o som da sua voz, mas, perdida naquele mundo branco, também já não conseguia distinguir as formas. Começava a desesperar de o reencontrar, tinha escassos minutos para abrir um portal antes que fosse tarde demais. Separarem-se fora um erro fatal, era responsabilidade dela impedi-lo de partir assim.

Subitamente, embateu num corpo. Já não o via, a claridade tinha caído sobre os dois como trevas. Com alívio, percorreu com as mãos aquele peito largo, envolveu-se nos seus braços. Bartolomeu tremia de frio e de medo, incapaz de compreender o que se estava a passar. Mas podia sentir Brísida junto a si, roçar-lhe o queixo com os lábios. E, naquele momento de aflição, deixou que as suas bocas se unissem num beijo inesperado.

Cerca de meio minuto passou sem que se movessem. Um espaço de tempo demasiado longo, branco, em que respiravam os dois com sofreguidão. Se Marcello os pudesse observar naquele momento seria um problema, pensou Bartolomeu, confuso. Mas claro que esse era o menor dos perigos. A ideia de que, naquele momento, o tutor aguardasse no Instituto, sem se decidir a interromper a ligação, desconcertou-o. De repente, sentiu uma fúria enorme apoderar-se dele.

— Vamos morrer por causa de uma estupidez.

— Não, não vamos… Espera, eu vou abrir agora o portal para voltarmos.

— O portal?

Só então percebeu que ela os podia salvar, e que ao longo daquele espaço de tempo a angústia fora toda dele.

 

*

 

É só o Rest.2, repetia Elda para si mesma.

Fora obrigada a pôr-se em andamento para escapar ao perigo que a circundava. Embora o que a ameaçasse naquele momento fosse a claridade, evitava permanecer em divisões escuras e procurava refúgio nos claustros frescos. Fazia deslizar a mão gelada pelos painéis de azulejos que decoravam as galerias, sem saber para onde se dirigia, mas não se atrevendo a parar. O nevoeiro era cada vez mais cerrado.

Fiquei para aqui sozinha, pensou. Nunca lhe passou pela cabeça que os colegas pudessem não estar juntos e imaginava que tivessem encontrado logo uma solução. Teriam pensado nela? Oh sim, Carola havia de ter insistido para darem uma volta à sua procura. E Bartolomeu teria concordado, sempre tão correcto. Mas os outros…

Fernão chegara a um claustro mais pequeno, em cujo pátio ainda se distinguiam quatro laranjeiras finas. Caminhara pelo convento inteiro à procura de uma saída, mas estava fechado naquele labirinto branco, e tinha por única companhia árvores de troncos enfezados, que ainda resistiam, como ele, à destruição. A forma redonda de uma laranja desaparecia num mar de leite, e ele estendeu o braço defeituoso para lhe tocar, mas os seus dedos rapidamente se dissiparam. Indolor, mas irreversível.

Não podia imaginar que, mesmo ao lado da árvore, sem o pressentir e sem conseguir comunicar com ele, se encontrava Elda. Bastara que ela se distraísse uns segundos, e vira-se envolta numa nuvem. Fernão diluía-se na mesma substância. Ela procurou recuar, mas o som dos seus passos já não se fazia sentir. Ele perdera o chão a seus pés: agora era só um corpo na vastidão branca.

— Já morri? — assustou-se o rapaz, ao ver surgir uma forma imprecisa.

— Não, não estás sozinho. A Elda também está aqui. — Aquela voz. Era…

Era bem um espectro, a silhueta mal desenhada de Flávio Hirpo.

Elda sentiu que chamavam pelo seu nome, julgou que aquele vulto alto correspondesse a Bartolomeu, mas quando o braço pousou no dela compreendeu que não podia ser ele.

— Quem és tu?

— Estava à tua procura — confessou Flávio.

— Tu… tu morreste! — anunciou Elda, perplexa, ao reconhecer os traços daquele rosto que a névoa desfigurava.

— Morri. Mas estou aqui. E o Fernão também.

Fernão solicitava-o, ao mesmo tempo, sem compreender o que se estava a passar. Não encontrava Elda em lado nenhum:

— Ela está aqui? Onde? Só te vejo a ti.

— É assim mesmo. Tenta manter-te calmo, o Marcello vai salvar-te agora.

E não havia mais nada que pudesse dizer ao rapaz. Tranquilizou Elda:

— Ele já vai ser puxado de volta.

— E eu? Olha, estou a desaparecer.

— Tu és a única que não corres perigo. E és a minha porta de saída.

Dito isto, Flávio agarrou-se a ela, como a uma tábua de salvação.

— És imune à névoa, Elda, podes deixar-te ir. Eu vou atrás.

 

*

 

Tem de haver uma razão, tentava convencer-se Carola, diante do espectáculo aterrador. Fugira do convento, atravessara o terreiro sem se deter, subira à torre de menagem. Dali, a perspectiva era desesperante: a névoa em expansão engolia a realidade, desbotava as últimas copas do arvoredo. Recapitulava factos em busca de uma solução: não fora capaz de reabrir o portal para regressar, desistira de encontrar os colegas, enviara um código de socorro a Marcello sem resultado. Cercada pelas ondas, morreria sozinha no alto mar.

Mas, então, a figura de Virgílio, surgida de parte nenhuma, alinhou-se à sua. Vacilante, sem dizer uma palavra, o homem retirou num gesto mecânico os óculos com que cobria o olhar morto, contemplou o efeito da devastação em marcha.

— Virgílio… O que está a acontecer? Responde, estás a assustar-me!

Os olhos baços de Virgílio eram duas chapas metálicas que reflectiam o mundo branco em expansão. Então, o sobrolho carregou-se-lhe, e foi como se se transformasse noutro homem. Perguntou, com a voz rouca que lhe pareceu terrível:

— O que é que fizeste?

— Não sei o que passa — balbuciou a rapariga, sentindo-se vítima de um julgamento apressado.

— Assim que me liguei, fui puxado para aqui. Deixaste o portal aberto.

— Não… não fiz de propósito. Esqueci-me, ontem. Hoje, havia uma ligação de interacção, de repente estava aqui sozinha.

— Não estás sozinha — Virgílio parecia lutar por cada palavra que conseguia pronunciar, como se as extirpasse do fundo de si. Agitou a mão. — Vês isto? Atrito.

— Os meus colegas? — E percebeu que os arrastara ela para ali. Atrito: o fenómeno paranormal, em que não quisera crer. Era, sem margem de dúvidas, a culpada pelo desastre. — Mas se eles não têm adesão no Rest.1, então esta névoa…

— Isto é a entropia. Se nos apanha é o fim… Aconteceu a camaradas meus, não há salvação.

A névoa rodeava-os, avançava inexoravelmente. Já não se viam as muralhas da torre. Não teriam muito tempo. Virgílio pareceu acordar:

— Anda, temos de ir embora daqui.

— Não posso. Não posso deixá-los aqui! E já tentei abrir o portal, não funcionou.

— Não funcionou, porque os teus colegas estavam a ocupar outros planos. Enquanto era assim, nem tu podias sair, nem eu podia entrar. Mas agora eu estou aqui.

— Então… isso quer dizer que eles já conseguiram voltar?

— Talvez. Seja como for, já desapareceram daqui.

Carola lançou para longe um novo olhar ansioso, mas já não havia convento nenhum. Tudo desaparecera. A noite branca substituíra-se ao mundo.

— Ouve, não há tempo, temos de sair. Já não podes fazer nada por eles.

 

5

Lembrar-se-ia, nos dias que se seguiriam, do brusco despertar no módulo de ligação: ainda meio inconsciente, erguera-se de rompante, estourara logo toda a energia; e, enquanto sorvia uma golfada de ar que lhe queimava a garganta, contara com urgência os corpos dos colegas.

Tiago ali estava, a lançar-lhe um sorriso insolente.

O regresso à realidade foi complicado, e penoso — mas passou-se de certo modo fora de si. Marcello veio comunicar-lhe alguma coisa ao módulo, e ela acenou com a cabeça, embora um zunido persistente a impedisse de compreender uma só palavra. Viu num relance Bartolomeu, já em pé, num visível estado de choque; Elda, alheada no seu casulo; Fernão, que aguardava sentado à mesa, absorto; e Brísida, que, com grande agitação, tentava estimular os colegas. Quanto a ela, sentia-se zonza, esmagada por uma força silenciosa que a imobilizava e impedia de respirar. Como desejava poder ser esquecida!

Parecia impossível sentarem-se à mesa e discutirem em conjunto, como das outras vezes. Só que Brísida rondava o módulo dela, como um tubarão, e não parecia disposta a sair dali sem obter respostas. A colega encurralava Marcello, de dedo espetado, e Carola ouvira-a mencionar de novo a tal palavra que, tornava-se agora evidente para todos, equivalia a uma sentença de morte: entropia.

— Carola… tens de te levantar — veio dizer-lhe, baixinho, Elda.

Ela obedeceu, como uma criança a quem se dessem ordens, foi instalar-se na cadeira. Brísida continuava a vociferar.

— Brísida, pára-te. Dá tempo… — ouviu pedir Marcello.

— Não me venha com falas mansas! Podíamos ter lá deixado a pele. E o Marcello também não está a dizer tudo. Não os podia salvar aos dois — e apontava para Elda e Fernão, sem se dar ao trabalho de incluir Carola no lote. — Como é que fez para os trazer de volta?

Marcello não respondeu. Fernão encarou directamente o tutor, a pedir confirmação: era verdade que o salvara, logo a ele? O olhar fugidio daquele homem, que sempre considerara seu adversário, pousou-se no seu, como para o sossegar: sim, salvara-o.

— Ó Brísida, cala-te — atacou então o rapaz. — Estás para aí a disparatar para quê? São coisas do Rest.2.

— Só podes estar a brincar — enraiveceu-se Brísida. — Ou então ainda és mais estúpido do que eu pensava.

Bartolomeu franziu os lábios, e Fernão estoirou:

— Achas que alguém tem culpa? Se calhar eu é que nos mandei para lá? Ou queres ver que foi a Elda?

A tudo isto Carola assistia num estado de alheamento, como a um filme a que se tivesse tirado o som. Mas então Brísida estalou os dedos na sua direcção, um estalido seco, estridente como uma bofetada, que a fez regressar à terra.

— Falas tu ou falo eu? — ameaçou-a.

Todos os olhares convergiram para ela. Carola andava a remoer aquela culpa na cabeça, a ver como lhe podia escapar: mas o facto impunha-se, com uma força brutal. Pusera a vida dos colegas em risco — e porquê? Por um esquecimento, uma desatenção. Naquele momento, eles podiam estar… O seu coração batia sem parar. Nada havia a fazer para aplacar a angústia, e ainda assim procurava um ponto de fuga, desesperada.

— Fui eu. Ontem abri um portal para o Rest.1, na minha ligação. Esqueci-me de o fechar. A culpa é minha.

Bastava olhar para Marcello para perceber que ele já descobrira que fora ela. Carola podia antecipar a exposição de toda a verdade, a sua participação no GRUPO revelada. Era certo, esperavam-na uns meses na Unidade de correcção do Conselho. O que lhe restaria depois disso?

— Eu bem lhe disse para ter cuidado, isto não é para brincar — irrompeu Brísida, mais uma vez, numa fúria.

— Tu…? Que raporto há? — balbuciou Marcello. — Então tu sabias?

— Ela pediu-me para a ensinar a abrir um portal, para se encontrar com o irmão. Uma criancice. Querem ser noctívagos e depois andam a ligar-se ao Rest. Expliquei-lhe os riscos, que era preciso fechar sempre o portal depois de cada encontro. Mas esta idiota…

— Ei, já chega! Não lhe falas assim! — gritou Bartolomeu, num repente.

Brísida suportou, vexada, o olhar recriminador do colega. O beiço tremia-lhe, e não ousou dizer mais nada. O rapaz, vermelho, levantou a cabeça para Marcello, a solicitar-lhe um acto de clemência.

— Mesmo é verdade, isto, Carola? Foi para ver tuo irmão?

O tutor perguntara com voz branda, e ela aquiesceu. Mesmo que quisesse contar a verdade, não teria forças para invocar nada em sua defesa. Deixaria que o mal-entendido passasse. De resto, pouco importava com quem se tinha encontrado, o mal estava feito.

— Isto é sério, Carola, comprendes as consequências se teus colegas ficavam lá…? — perguntou Marcello, mas Carola não reagiu. Mantinha-se cabisbaixa, à espera que a tempestade passasse. Os outros agitavam-se, Marcello teve de puxar por ela. — Estou a falar contigo, olha para mim. Comprendes ou não comprendes?

— Eu sei. Sei que isto é sério — respondeu ela, enfim, e ergueu a cabeça, mas sem ousar encarar os colegas. — Eu sei que eles podiam ter…

Emudeceu de novo, voltou a olhar para o chão. Marcello aguardava ainda, em silêncio, estavam todos à espera de uma frase qualquer. Chegou-lhe aos ouvidos um som abafado, de profundo desprezo, da parte de Tiago.

Era óbvio, Carola ainda não dissera o mais importante:

—Desculpem. Por favor, desculpem.

 

*

 

Seria bom que no dia seguinte pudesse ficar em casa, mas não podia. Aqueles eram dias de trabalho, e ninguém tinha morrido para justificar folga. Carregava um peso insuportável ao regressar ao Instituto naquela manhã. Mas, a meio do caminho, encontrou Bartolomeu, e percebeu logo que ele se levantara mais cedo para fazer um desvio.

— Queres falar um bocado, Cenoura?

— Estás muito desiludido comigo, não estás?

— Estou preocupado. Isto não parece teu.

Mas não lhe deu um ralhete, nem tentou extorquir informações. Querido Bartolomeu.

Na reunião matinal, o tutor anunciou que, por precaução, ensinaria os impulsores a criarem portais de transição entre os dois modelos do Rest. Brísida passaria o dia todo a ignorar Carola, mas naquele momento não desarmou: insistia que o perigo fora demasiado elevado para se dar o episódio por concluído. Não recolheu apoios; ninguém se sentia com energia para novos combates. E Fernão levou os olhos ao céu, depois piscou um olho à culpada: ela que criasse os problemas que quisesse, ficaria do seu lado se a alternativa era alinhar-se com Brísida.

E depressa cada um se ligou ao seu mundo virtual.

Carola encontrou pouso num dos seus lugares predilectos, uma remota cascata da Serra do Açor. Tugúbio viera sentar-se a seu lado, sossegado, com a cauda a abanar; e Mónica mantivera-se à distância, com os pés na água gelada, entretida a lavar pedrinhas em silêncio.

Mas chegara a hora do encontro com Virgílio, e Carola regressou ao Rest.1 com as mãos a tremer. O Convento de Cristo tornara-se um lugar fantasmagórico, apesar de o sol brilhar no céu e de nenhuma ameaça pairar sobre ela. Sentado na fonte do claustro principal, o homem esperava.

Ela começou por relatar o que se passara no Instituto, e como Brísida, sem saber, lhe arranjara um alibi. A concatenação dos eventos estava agora clara na sua cabeça, percebia como desencadeara uma situação de atrito, e os danos que podia ter causado.

— Pensaste um pouco no que se passou? — acabou por perguntar Virgílio.

— Não consigo pensar noutra coisa. Pus a vida dos meus colegas em perigo. A culpa foi minha.

— Não é bem culpa. Foi um acidente, digamos. Um esquecimento…

O tom com que se lhe dirigia era horrivelmente distante.

— Não acreditas no que estás a dizer — constatou ela.

— Não, não é isso. Acredito que sim, que tenha sido um esquecimento. Mas não posso deixar de pensar no que isso significa… Já consideraste bem as implicações deste lapso? Enfim, que, se calhar, querias ser apanhada?

Carola sentiu-se numa das sessões com a psicóloga que fora obrigada a seguir depois da morte de Mónica. Virgílio adoptava a postura de um interlocutor gentil mas neutral, que via as coisas como eram, sem afecto. Esforçara-se tanto por se convencer de que era uma neoludita, de que estava pronta para integrar o GRUPO, combater a Bóreas. Via agora que as coisas eram menos claras na sua cabeça do que pensava. E que procurara naquele conhecimento antigo um comparsa, alguém que lhe desse respostas já prontas.

— Acho que estes encontros não são muito bons para mim. Fiquei um bocado assustada com o que se passou ontem. Muito assustada, aliás.

— Estás a querer dizer…

— Preferia que não nos víssemos assim. Aqui.

Virgílio demorou alguns segundos mais do que o previsto a responder.

— Porque é que não esperas um pouco? Podemos voltar a ver-nos daqui a uma semana ou duas, logo me dizes que decisão tomaste.

— Este lugar dá-me arrepios. Desculpa.

— OK, não tens de pedir desculpa. Eu percebo. É normal.

Carola sentia-se quase humilhada. «É normal»: que terrível comentário! Era um atestado de menoridade que lhe passava.

— Não há nenhum problema, a sério — reiterou Virgílio, talvez por se aperceber do seu constrangimento. — Vou quebrar a nossa adesão. Tens dezassete anos, precisas de viver um bocado sem esta responsabilidade. Não quero que te sintas sufocada.

Aquilo fê-la pensar em Analisa, nas verdadeiras razões que estariam na origem da fuga. Mas, mais uma vez, não ousou perguntar-lhe pela filha.

— O que penso da Bóreas não mudou — garantiu Carola. — E não queria perder o contacto…

— O contacto nunca se perde. Somos velhos amigos, não somos? — e, num gesto que a tranquilizou e inquietou ao mesmo tempo, Virgílio pousou-lhe a mão no ombro. — Deixa passar um tempo, logo vês como te sentes. Havemos de voltar a falar quando estiveres pronta.