02

SÓ VANTAGENS

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Elda
Bartolomeu
Carola
Fernão
Brísida
Tiago
Marcello

1

Segunda Vez, Bartolomeu em LisboaBartolomeu flutuava no mar alto, a gozar o estado de exaustão. Nadara durante horas, de uma tirada. Agora, sentia o pulsar das veias, os dedos engelhados arrefeciam com a oscilação das ondas. Voltava a ter consciência de onde estava. Sabia que o corpo mentia, era só uma experiência cerebral; mas como recusar-se aquele engano? Todos os dias, assim que se ligava ao módulo, o mesmo prazer: quilómetros no oceano solto, o coração apaziguado numa batida regular. Não poderia desejar mais nada.

Cerrou as pálpebras por um momento, para apagar a imensidão de mar à sua volta. Quando as reabrisse, veria surgir uma ilha, a orla de uma praia ou um banco de rochedos, uma companhia a seu lado, o que decidisse — ou mesmo o que não decidisse, mas mais o contentasse, instintivamente. Funcionava assim, o mundo respondia-lhe como a um dono. E era tão natural, tão simples confiar-se àquele equilíbrio, confiar naquele universo.

Não fora assim em Odeceixe, claro, e ele não se esquecera disso. Mas agora estava numa ligação individual: nenhum perigo à espreita, a realidade conformava-se aos seus desejos. Sujeitar-se aos ditames do protótipo numa ligação de interacção, de quinze em quinze dias, parecia um preço justo a pagar pela liberdade.

No Instituto, o corpo de Carola jazia a dois metros do seu, num dos enormes módulos verdes, mas também ela estava entregue a um universo próprio. Sentada na relva, tinha de fechar os olhos quando levantava o rosto, para o sol não os ferir – ainda que isso nunca pudesse acontecer ali. Chorões pendiam sobre o rio Lima, e ela escutava a corrente de água.

Mas eis que o som de um mergulho de chapa a fez estremecer.

— Está gelada! — gritou Bartolomeu. Carola riu-se, a reconhecer aquela coragem alegre, e o amigo desafiou-a: — Não sejas medricas, Cenoura, entra na água.

Não era mesmo Bartolomeu, nem sequer o fantasma dele, apenas uma projecção. O rapaz nada poderia fazer que lhe desagradasse. Se assim o decidisse, ela poderia excluí-lo do cenário naquele preciso momento, apagar o curso do rio, guardar só o silêncio. Mas mais uns minutos não fariam diferença.

— Estás a gozar?

Fernão tinha dificuldade em acreditar que alguém pudesse não conhecer os Rolling Stones, mas tudo bem. Escandiu o nome a Bartolomeu, e confirmou: sim, «pedras rolantes». A Adriana disse qualquer coisa que ele não percebeu. Era uma colega do liceu em Setúbal, uma meio loura, meio opaca; por que motivo aparecia ali? De repente passa-lhes um charro. Fernão nem precisava daquilo, bastava querer sentir-se pedrado. Mas, se lhe era proposto… Era assim que queria o seu Rest.2, sem guião, com espaço para bizarrias daquelas (até a Adriana). Só trocar de corpo lhe continuava a ser inacessível: uma operação tão simples, e o modelo negava-se. À sua direita, Bartolomeu abanava a cabeça ao compasso da batida. Um pouco ridículo imaginá-lo naquele concerto, não fazia o estilo dele. Mas Bartolomeu era o mais próximo que tinha de um amigo no momento, e vê-lo ali tornava a situação mais autêntica.

Bartolomeu fazia-lhe sinal com a cabeça, era para ela o seguir. Os outros colegas, Carola, Fernão, Brísida, Tiago também, estavam todos ali, apanhavam o tapete móvel. Não passava pela cabeça de Elda declinar o convite, mas a situação era tão confusa como sempre: deixava-se ir à deriva. Não ousava perguntar para onde iam, caminharem juntos constituía um fim em si mesmo. Bartolomeu parecia conhecer o destino, e ninguém fazia perguntas. Elda reconheceu então aquelas paredes. O cenário por vezes mudava, como num sonho, sem que ela fizesse nada contra isso. Estava de regresso ao liceu de Coimbra. Fechou os olhos por um instante e pensou: Isto não é real. Mas deixou-se contagiar pela leveza.

Brísida aconchegou-se ao corpo de Bartolomeu, que a acomodou com os braços fortes. A noite estava fresca, embora agradável, e a lua brilhava no Douro, estavam os dois sentados nos jardins do Palácio de Cristal. Havia outras pessoas ali, casais, mas ninguém os importunaria; para Brísida era como se só eles existissem no prado. O rapaz apontou para a grande tela montada à sua frente, quis saber:

— Como se chama o filme?

Esplendor na Relva — respondeu ela, com um ligeiro embaraço. Temia que Bartolomeu se apercebesse da perturbação; e, contudo, aquela não era uma experiência desconfortável. Ele aproximou o queixo do seu pescoço. Por um segundo, Brísida lembrou-se de que estava no Rest.2, de que ele era só uma projecção, mas depressa se conseguiu abstrair disso.

 

*

 

Havia já quase uma hora que Bartolomeu aguardava a sua vez. O Instituto era um labirinto complexo, mas, além da sala de impulsão, não conhecia muito mais do que aquele corredor de portas fechadas que conduzia ao gabinete de Marcello. Os edifícios contíguos, situados ao longo da encosta, fervilhavam de actividade, por vezes via passar estranhos no átrio. Mas no piso onde trabalhavam era raro cruzarem-se com pessoas. A porta abriu-se por fim e Brísida saiu, com um sorriso, na sua direcção. Era a última, agora só faltava ele. Num único gesto, a rapariga indicou-lhe o caminho livre e despediu-se.

— Senta, Bartolomeu — pediu o tutor, a esfregar os olhos cansados. — Desculpa, fez um pouco tarde. Brísida sempre tem muitas perguntas…

— Não faz mal — o rapaz puxou a cadeira. — Não tenho pressa.

Marcello gostava da atitude dele. Era ainda cedo para tirar conclusões, mas por enquanto parecia ser o impulsor mais fiável, aquele que viria a criar menos problemas. Mostrava-se sempre bem-disposto, com energia. Ao chegar, pela manhã, o tutor já o apanhara duas ou três vezes no ginásio das instalações, a exercitar-se.

— Hoje é dia de bilanço, Bartolomeu. Falei com todos teus colegas.

— Dia de…? Ah, um balanço, sim. Vamos lá a isso.

Marcello fez-lhe perguntas sobre os primeiros dias, a adaptação, os problemas que encontrara. Lembrou-lhe que, em caso de dificuldades, ou se se sentisse maldisposto, podia comunicar com a sala de impulsão através da pulseira virtual.

— Pois, ainda não precisei. Mas porque lá, quando nos ligamos… o Marcello não pode mesmo ver o que se passa connosco?

Marcello sorriu. Todos procuravam essa confirmação. E garantiu: as ligações individuais eram como quartos escuros; na fileira de módulos, cada impulsor vivia no seu e detinha a luz. Marcello não tinha forma de os observar.

— É que é tão livre, e variado… e real! Quando falo com os meus pais, com amigos, percebo que isto é mesmo diferente, não tem nada que ver com o Rest.1.

Entre colegas, tinham começado a chamar assim ao modelo de base, o único a que os outros tinham acesso. Brísida aludira a sensações aproximativas, interrupções, contornos esfumados. Estava a milhas de distância do protótipo que eles experimentavam.

— Se queres ver o Rest.1, esta semana podes. Pedi a Brísida para fazer um teste, abrir um portal de transição entre modelos. Podes acompanhar…

Bartolomeu respondeu com um sorriso pouco convincente.

— O quê? Há problema? — perguntou o tutor.

— Não, é só que quando me comparo com os outros… Isto não é um trabalho. Eu estava convencido de que ia participar numa missão difícil, complicada, afinal passo o dia inteiro no módulo, em total liberdade… Só vantagens!

Bartolomeu baixou o olhar; como admitir que, podendo desfrutar dessa liberdade como entendesse, passava os dias inteiros no mar? Marcello respondeu:

— Eu não sei por que tu foste escolhido, Bartolomeu, mas tenho a certeza que mereces tão como qualquer outro. Não estás a ocupar lugar de nenhum. E olha, não vês esto como um luxo. A liberdade é um trabalho.

 

2

Não é que não gostasse de dormir, mas, ultimamente, acordava sempre antes do alarme, e a espertina impedia-o de voltar a adormecer. Àquela hora, Bartolomeu era dos primeiros a subir a rua das Amoreiras, sob a luz que a cobertura de vidro-núbilo coava. Não lhe requeria esforço, já estava com a cabeça noutro mundo, e chegava num instante ao topo da ladeira, àquela zona árida onde a cidade parecia interromper-se. O eléctrico, que partia dali para atravessar a avenida ao abandono, fazia horas na estação. Na área de acesso aos tapetes móveis, placas amarelecidas indicavam Campolide, os bairros do norte, o Parque. Bartolomeu conhecia desde pequeno a interface lúgubre, a que a claridade fosca conferia um aspecto ainda mais desolado, e já nem dava por ela. Apanhou o tapete da direita, eram dez minutos de marcha a partir dali.

Ao aproximar-se do Instituto, identificou Tiago, sentado num banco do átrio a olhar pela janela. Não era a primeira vez que o via no pouso. O estranho rapaz, apesar do choque da ligação inicial, não faltara um único dia à chamada. Era sempre dos primeiros a chegar de manhã e por hábito não se dignava a trocar com os colegas mais do que saudações silenciosas.

— Ei, Tiago, posso sentar-me aqui?

O outro levantou os olhos verdes, indicou com um gesto largo:

— O espaço é livre.

Não havia animosidade. Bartolomeu sentou-se e observou Lisboa. No espaço de alguns minutos, o céu pusera-se negro.

— Que vista! — Bartolomeu não queria fazer conversa de circunstância, mas não sabia como preencher o vazio. — Vivemos de costas voltadas para isto.

Tiago não deu resposta. Bartolomeu insistiu:

— Deve ter sido uma cidade bonita, hã? Imagina como seria viver aqui.

— Não vale a pena pensar nisso, pois não? — concluiu o outro. — Sabemos que não pode acontecer.

— Não sei — contrapôs Bartolomeu. — Com o Rest.2 podíamos ir a Lisboa…

— Não é a mesma coisa.

As frases de Tiago não chegavam a ser hostis, mas eram lapidares. Bartolomeu fixou o colega, que não desviou o olhar da paisagem, e decidiu atrever-se a abordar a questão.

— Desculpa se te pergunto isto, mas andamos todos a pensar na mesma coisa: se te tens conseguido ligar ao Rest.2 ou não. Não é só curiosidade, é porque estamos preocupados contigo. Ainda não nos conhecemos bem, mas…

— Não. — A resposta de Tiago atropelou o discurso de Bartolomeu. Explicou, num tom controlado: — Todos os dias tento ligar-me, todos os dias falho: é isto.

— Está bem — Bartolomeu baixou a fronte.

Tiago levantou-se e fez menção de encaminhar-se para a entrada, mas hesitou um segundo, como se pensasse no que devia dizer.

— Eu sei que as tuas intenções são boas. Mas não há nada que tu possas fazer, nem tu nem os outros. E aquilo que tu disseste há pouco, o facto de não nos conhecermos lá muito bem…

— Sim?

— Não leves a mal, mas acho melhor deixar isso como está.

 

*

 

Vista do monte, a paisagem era incerta como numa aguarela. Brísida e Bartolomeu tinham de permanecer imóveis durante algum tempo até que se definissem as linhas das casas, as margens do rio que desaguava no oceano, uma ilha em forma de coração. O sol iluminava Vila Nova de Cerveira, isso sim, mas, para lá da fronteira, as terras da Galiza perdiam-se num nevoeiro denso.

— E se quisermos ir para a ilha, como é? Decides tu ou decido eu?

— Não funciona assim — explicou Brísida.

No Rest.1, estavam limitados a um ponto de partida; dali podiam avançar, mas não era com um abrir e fechar de olhos. Bartolomeu agachou-se, alisou a terra vermelha com a mão. Não levantava pó nem lhe manchava os dedos. A mesma sensação de matéria bruta, inerte, que experimentara ao apoiar as mãos numa pedra, pouco antes. Mesmo Brísida, que lhe tocara no ombro, ao de leve: o corpo dela não lhe transmitia calor nenhum. O modelo de base era uma contrafacção evidente.

— Olha, aquilo não se compara, é como um rascunho — resumiria Bartolomeu a Carola, já ao fim da tarde, enquanto percorriam o tapete móvel a caminho de casa.

Não dava para explicar, ou Carola não poderia compreender. Era preciso ver, e Bartolomeu e Brísida tinham transitado para o Rest.1 sozinhos.

— Mas como é que se transita? Concretamente?

Bartolomeu estranhou. Desde quando a amiga se interessava pelos aspectos técnicos?

— Não sei, quem tratou disso foi a Brísida. Tem de se abrir um portal, mas o importante é fazer antes uma adesão entre os… Ei! Cuidado!

Um desconhecido acabara de enfiar-lhe uma cotovelada. No sábado ao fim do dia, as pessoas só pensavam em voltar para casa.

— Não percebo por que é que eles não alargam isto — refilou Carola, e, com os braços abertos, tocou as duas pontas do tapete. — Se ao menos prolongassem a ciclovia… Depois queixam-se de que andamos sempre todos doentes.

Bartolomeu seguia o apressado com os olhos: talvez uma mulher, filhos? Era isso que levava as pessoas a correr assim? Ainda era um homem novo, pouco provável que fosse fértil, de acordo com as estatísticas.

— As pessoas devem achar que fazer desporto no Rest lhes serve de muito… — Carola não desarmava.

O comentário trouxe-o à terra. Desporto no Rest. A amiga lançou-lhe um olhar eloquente, de troça: passara ele outro dia no mar? Bartolomeu contrapôs:

— Eu sei, e tu? Deixa-me adivinhar… O cão. O Tugúlio, ou lá como se chama. Ver gente, nem pensar…

— É Tugúbio — corrigiu ela, a rir-se. — E, sim, Bartolomeu, escusas de vir, é claro que já te vi. Uma projecção tua. Também já experimentaste, suponho…

— Já. É tão estranho. És tu e não és tu…

— Pois. A tua é uma reprodução perfeita: anda como tu andas, diz o que tu dirias, até me chama Cenoura. Mas, estás a ver, eu sei que esse Bartolomeu vai dizer e fazer o que eu quero que ele diga e faça. É um pouco assustador… um pouco fascista.

Bartolomeu ouvira da boca de Carola coisas semelhantes no passado, quando o Rest não era mais do que um tema teórico de conversa. Não dispunha de contra-argumentos, mas também não pensava assim tanto no assunto.

— Já agora, sabes uma coisa que me deixou intrigada? À partida, nós decidimos quem queremos ver no Rest, não é? Mas eu… O Marcello. Tentei materializá-lo, e ele não apareceu.

— O quê? Tens a certeza? — Ele já convocara múltiplas projecções, amigos do liceu, os impulsores, desconhecidos. Até Tiago, que não se conseguia ligar à máquina, ele pudera vir no Rest.2. Porque é que o com o tutor não funcionava?

— A certeza absoluta. Pedi à Elda para fazer o teste. Nada, não executa.

— Bem, isso é estranho. Posso perguntar à Brísida…

Tinham chegado ao ponto em que os seus caminhos se separavam, e desta vez por mais do que umas horas, visto que o dia seguinte era domingo. Carola perguntou:

— Vais vê-la amanhã?

— Pois… Sabes que ela está em Lisboa há pouco tempo. Mora com a irmã, convidou-me para ir lá a casa almoçar.

Carola manteve um silêncio pesado, não disfarçou o olhar de reprovação.

— Carola, já sei — suspirou Bartolomeu. — Não digas nada.

— Não digo nada.

— É um almoço. Só isso. Não vamos propriamente começar a namorar.

— Tu não podes começar a namorar com ela. Essa é a questão. Só que ela não sabe. Então para quê enviar-lhe sinais contrários?

— Não estou a enviar sinal nenhum. E quem te diz que a Brísida me interessa?

— Ninguém. Mas vê lá se tens cuidado — acrescentou Carola, como que a avisá-lo —, porque tu a ela interessas.

 

*

 

Atrasara-se a conversar com Carola. Quando abriu a porta de casa, o pai, sentado à mesa, desviou os olhos do prato para o relógio de parede.

— Desculpe, pai, atrasei-me.

Sandro assentiu com a cabeça em silêncio. De costume, esperavam pelo filho para jantar, mas naquela noite a sopa já estava servida.

— Vou só lavar as mãos — disse Bartolomeu. — Como foi o dia no hospital?

O pai respondeu com uma ligeira inclinação de cabeça. Horas extraordinárias, de certeza. Era dos poucos médicos que aceitavam receber velhotes sem dinheiro, num consultório esconso junto ao hospital. Na cozinha, enquanto arregaçava as mangas da camisa, Bartolomeu deu um beijo de fugida à mãe, que retribuiu com uma carícia e a costumeira expressão de ansiedade.

— Ó filho, é que também te deixam sair tão tarde… — sussurrou Marisa. — Anda, vai para a mesa, que já te levo o prato.

Bartolomeu voltou para a sala, sentou-se em frente ao pai.

— Coma, que arrefece.

Sandro murmurou qualquer coisa e tentou segurar a colher com firmeza, mas a mão tremia. Tinha setenta e três anos. A mãe já voltava da cozinha, num coxeio, com o prato nas mãos. O cheiro quente e doce da sopa abriu-lhe o apetite. No Instituto, tinham direito a ração completa ao almoço, mas nada que se comparasse.

— Mas estas horas… ou houve novidade? — insistiu Marisa.

— Não, mãe, deixe lá. Fiquei a falar com os colegas. Isto está óptimo!

Juntava ao apetite verdadeiro uma veemência exagerada. A mãe encolheu os ombros, um gesto típico. Trabalhava nas estufas, era obrigada a levantar-se de madrugada para apanhar o transporte para Monsanto. Sempre lhes dava acesso aos melhores legumes da cidade.

— Estas horas todas. Não há direito — voltou a queixar-se a senhora.

— É um ano, Marisa — interveio o pai para terminar a conversa. — Não é o fim do mundo.

Ela resignou-se, concordou com a cabeça, o seu rosto redobrou de ânimo:

— Pelo menos, depois… Já sabes o que te espera.

Era como uma peça de teatro, sempre com as mesmas réplicas. Bartolomeu esboçou um sorriso apagado, e levantou-se em direcção à cozinha.

— O que é? Esqueceu-me alguma coisa?

— Não, deixe, mãe, só uma pitada de sal.

— Está aí ao lado das conservas — ouviu-a indicar, como se a disposição das coisas naquela cozinha alguma vez se alterasse. Não acendeu a luz e demorou-se um pouco mais do que o necessário na divisão às escuras, a respirar. A voz da mãe alçou-se então num arroubo de entusiasmo: — Ah, queres saber? Adivinha o que chegou para ti.

Nem era preciso adivinhar. Fechou os olhos com força, como se isso pudesse alterar a realidade.

— O quê?

— Uma carta da Sofia.

 

3

— Não, isso não é mistério nenhum. A Carola está a imaginar coisas — afirmou Brísida. — É simples: o Marcello tem imunidade, por isso a imagem dele não aparece. Não é comum, porque só a um alto nível da Bóreas é que se concede imunidade a alguém. Mas é perfeitamente plausível que ele o tenha conseguido.

— Como assim, imunidade? Quer dizer que nós não o podemos ver no Rest.2? — interpretou Bartolomeu.

— Exacto. Nem no Rest.1. Ele fica de fora.

— É da maneira que se mantém a salvo dos assaltos eróticos da vossa amiga — concluiu Verónica Quife, que, naquele momento, trazia para a sala uma travessa cheia.

Bartolomeu demorou uns segundos a compreender a piada da irmã de Brísida. Ainda não se habituara à presença daquela rapariga, uma versão um pouco mais velha da colega, tão decidida como ela, mas sem dúvida mais exuberante.

Dava para ver que ficara surpreendido com o cheiro intenso que emanava do prato. Verónica, com a sua voz rouca, fez as honras da casa.

— Cabrito no forno, à moda dos bisavós — disse, a rir-se, enquanto ondeava a farta cabeleira.

Não era cabrito, claro; mas era carne de verdade. Galinha. As irmãs viviam num apartamento modesto, na rua Pedro Nunes, mas, pelos vistos, era verdade que a profissão de actriz rendia bem. Brísida procurava banalizar a situação, e servia os pratos com naturalidade.

— Até pensei em convidar os outros, mas a casa é pequena. E depois, não sei se seria impor.

— Ataca, Bartolomeu, antes que arrefeça — comandou Verónica.

Bartolomeu saboreou a primeira garfada. Todas as sensações lhes eram permitidas agora no Rest.2, mas comer era um prazer que ainda podia ser recordado no mundo físico de vez em quando — e havia uma diferença.

— Está delicioso, Verónica! Mesmo óptimo! — e, voltando-se para Brísida, sugeriu: — Por acaso não teria sido má ideia convidar os outros. Já lá vão quase duas semanas, era tempo de convivermos.

— É que, contigo, sentia-me mais à vontade… — justificou-se ela. Levou um pouco a mal o comentário, embora tivesse de reconhecer que, como grupo, não se saíam lá muito bem. Bartolomeu tinha o contacto fácil, mas ela embirrava com todos: Carola era uma exaltada, Elda uma ameba, e que dizer do detestável Fernão?

— Agora! Se ela convidava o grupo todo, lá se perdia a mística — atirou Verónica. — Tinham vocês de ir namorar para o Rest.1 outra vez.

— És mesmo parva — Brísida lançou um olhar mortífero à irmã. — Não ligues, Bartolomeu, só diz disparates.

Bartolomeu fez um sorriso embaraçado, tentou mudar o rumo à conversa:

— Verónica, tu és actriz no Rest, não é?

Pela reacção de Brísida, ainda fez pior. Nunca pensara bem no significado do termo, mas sabia que tinha que ver com permuta de fantasmas. Essa era uma das poucas restrições impostas no projecto: no Rest.2, cada impulsor tinha acesso apenas à entidade que o representava, não podia experimentar outros corpos. Verónica elucidou-o:

— Sou, sou actriz. É essa a palavra, não é? Alugo o meu fantasma no Rest. Uma vida ao serviço da comunidade. Não imaginas o que as pessoas estão dispostas a pagar para fazerem o que lhes apetecer com outro corpo.

— Verónica, vá lá… — pediu Brísida.

— Vá lá o quê? Se calhar o teu amigo está interessado em malandrices… Até!

O discurso de Verónica, como sempre pontuado por aquelas interjeições de significado pouco claro, embaraçou-o. Ouviam-se histórias no liceu, o Rest era encarado pelos jovens da sua idade como um vasto campo de experiências sexuais. Desde sempre, ele arredara essa ideia. Murmurou:

— Desculpa, não queria ofender.

— E não ofendes, é o que eu faço e acabou. Toda a gente desdenha mas olha, se fosse fácil ter uma licença, acredita, muitos punham o fantasma à disposição. E nem é só pelo salário. Libertar-se do próprio corpo durante uns minutos também é uma sensação única.

— Ah…? E para onde é que tu vais, tu, quando alguém aluga o teu fantasma?

— Para lugar nenhum. Ferro-me a dormir e acordo outra. É uma espécie de cura de sono. Quando o cliente se vai embora, retomo o meu fantasma.

— E… não sentes nada? Durante, ou depois? Não há conflitos?

Verónica não respondeu logo. Quando o fez, parecia menos artificial.

— Há a porcaria das alergias, uma praga. Costumam ser reversíveis, mas às vezes não são. À conta disso, descubro um dia que já não posso comer morangos no Rest. É um exemplo idiota, pode ser bem pior. Há alergias ao sol, à água do mar, à pele até…

— Que horror… Não te assusta?

— Descansa, há formas de me proteger. E as vantagens, ainda assim…

— Mas como é que conseguiste? Achava que era complicado obter a licença…

Brísida ia para dizer alguma coisa, mas Verónica levantou-se e pôs a mão no ventre redondo, salientando o que seria óbvio se não fosse tão raro:

— Para mim foi fácil. Sou fértil.

 

*

 

Ao domingo, o Torel estava sempre cheio.

Era o espaço dos jovens lisboetas, um bunker de betão suficientemente afastado, ligado à cidade por um corredor. A larga vidraça permitia ver a cidade abandonada, o Tejo. Ouvia-se música ao longo do dia, e às vezes vinham tocar bandas ao vivo — sempre coisas muito amadoras, mas era difícil que se sujeitassem a apupos. Ao cair da noite, abriam-se as portas para o jardim, os grupos espalhavam-se ao ar livre, alguns pares podiam formar-se à luz escassa dos candeeiros. Para as autoridades, era preferível que se reunissem ali, fora de portas. Domingo era dia de descanso na cidade.

Bartolomeu conhecia aquelas paredes de cor, e era rara a vez em que não encontrava conhecidos. Levava agora quinze minutos à conversa com o Cristóvão, um ex-colega do liceu que recebera como atribuição um posto na reciclagem. Dez horas por dia, seis dias por semana, o ar estafado e a voz que se arrastava:

— É aguentar. Toda a gente diz que o primeiro ano é o mais dificil. Mesmo à noite, no Rest, os minutos são contados.

Um mover de olhos rápido traía as suas esperanças: estava convencido de que Bartolomeu fora recrutado pela Bóreas como engenheiro do Rest. Não era o primeiro a esperar dele um favor. Bartolomeu engrolava desculpas.

A salvação surgiu na figura de Fernão que, parado à porta do centro, de braços cruzados, hesitava quanto ao que fazer. Bartolomeu apressou-se a ir ter com ele. Enquanto lhe apertava a mão, perguntou o que queria tomar.

— Pode ser uma cerveja — respondeu o rapaz, sem saber como se mover naquele mundo. Em Setúbal, não havia lugares assim.

Bartolomeu não tardou a receber duas imperiais da empregada langorosa. Oferta da casa.

— Há tipos com sorte — comentou Fernão, enquanto entrechocavam os copos gelados. — E se fôssemos lá para fora? Isto está um bocado cheio.

— Passava aqui a vida no ano passado, com os meus colegas — explicou o outro, enquanto caminhavam. — Mas agora mal os vejo. Alguns foram mandados para o Sul, talvez a maior parte. Os que ficaram estão sempre a trabalhar. Quando me encontram, olham para mim como se eu fosse uma ave rara.

— Mas nós somos aves raras! O meu irmão Jacinto passou por Lisboa este fim-de-semana; às vezes vem cá fazer entregas… Ele ainda não acredita que isto me calhou na rifa. Pediu-me se lhe arranjava uma cunha lá no Instituto!

Bartolomeu fez um sorriso amargo.

— A irmã da Brísida também me encheu de perguntas. Fui hoje almoçar a casa delas… — Fernão teve a decência de não se manifestar, mas não era preciso muito para se perceber que não simpatizava com a colega do Porto. Bartolomeu decidiu ignorar essa circunstância e procurou uma forma de abordar o assunto que o preocupava. — Sabes, essa irmã dela, a Verónica… é fértil.

— Ah, sim? Não, não sabia.

— Está grávida. Até. — Bartolomeu impacientou-se. Já absorvera aquele tique linguístico idiota. — Não se vêem todos os dias, pois não? Mulheres grávidas?

— Não, não se vêem todos os dias. Mas existem. Olha as nossas mães.

— Isso era noutro tempo. E a Verónica… ela até é daqueles casos, superfértil. Já teve três filhos. Mas não é casada, vive sozinha com a Brísida. — Fernão não parecia muito interessado no discurso. — Percebes? Não ficou com nenhum. Deve dar os filhos, tipo, para adopção.

— Pois, calculo que sim.

— E o Conselho aceita isso, agora? Em vez dos casamentos?

— Sei lá, não faço ideia. Era o que faziam de melhor. A política dos casamentos é uma estupidez. Francamente, ainda bem que eu não sou fértil. Era o que me faltava ter de me sujeitar a uma noiva imposta e andar a levar com lições de castidade…

Bartolomeu, com uma expressão acabrunhada, levou a mão ao envelope que guardava no bolso. Tirou uma fotografia lá de dentro e estendeu-a ao colega. Sofia: quinze anos, a noiva que o esperava em Faro.

Só então Fernão compreendeu o que estava em jogo:

— Ah! Tu és fértil…

 

4

Segunda Vez, Brísida e Bartolomeu no barco

Estava na água, até aí correspondia às suas ligações individuais; mas despertara no Rest.2 a bordo de um barco perdido na escuridão, com excesso de passageiros. Por entre as figuras de estranhos, Bartolomeu contou os colegas — todos, menos Tiago, mais uma vez. Aguardava por sinais que denotassem a consciência comum de viverem nova ligação de interacção. Ali tão perto, se forçasse os olhos, identificava-se o traçado longo de Lisboa. Podia atirar-se à água, mas não o faria: à noite o mar escondia segredos. Ergueu-se, o barco oscilou, ouviram-se lamúrias.

Forçado a sentar-se de novo, pressentiu o vulto atrás de si e imediatamente sentiu um instante de terror. Seria ele o único a aperceber-se da presença daquele fantasma?

— Acorda — intimou Flávio Hirpo.

Despertou então com a visão das costas nuas de uma jovem mulher, que dormia a seu lado num sofá. Deixou-se ficar dez segundos assim, de olhos abertos, a sentir o perfume adocicado que se desprendia daqueles cabelos e se misturava ao cheiro forte de café acabado de preparar. Antes de agir, precisava de se consciencializar de que nada do que ali vivesse era real, nem interferiria no curso programado da sua vida. Certificou-se de que estava vestido, depois rodou a cabeça e registou o cenário envolvente: uma sala de aspecto decadente, ampliada graças a um efeito de espelhos. O sofá, em forma de cotovelo, ocupava o centro da divisão. Do lado oposto, esparramado numa das largas almofadas de veludo, observava-o um rapaz de sorriso conivente.

— Parece que voltaste do outro mundo — comentou o estranho, sem alterar a expressão. Tinha traços médio-orientais, cabelo pretíssimo que divagava em ondas pela testa, e uma tez de canela que contrastava com o branco da camisa desabotoada.

Bartolomeu sentiu-se confundido: onde estavam os seus colegas?

— Não está cá mais ninguém — antecipou o rapaz, ao vê-lo girar a cabeça. E, apontando para a rapariga que dormia: — Tirando a Lavínia, claro. Mas essa… com a festa que lhe reservámos ontem, tão cedo não acorda!

Bartolomeu pôs-se em pé, sentiu uma vaga dor de cabeça. Resultado da tal festa? Dispôs-se a entrar no jogo e perguntou, com voz indiferente:

— O que é que havia para celebrar?

Da janela, via-se uma rua calcetada, por onde descia o eléctrico. Lisboa!

— Eu sei, não há nada. Celebra-se à mesma. Queimo os cartuchos todos antes de ir embora.

O outro pusera-se ao seu lado, disparava as palavras como balas. Olhos verdes, rasos de água. Não se compreendia. E então, pela janela, viu passar pessoa conhecida.

Era Elda quem descia a calçada, mão na mão com uma criança.

Ruídos na estrada, paredes caiadas expostas ao sol. A cidade vivia.

— Mas tu sabes por onde estamos a ir? — Elda modulava a voz para não assustar a menina que acompanhava.

— Pelo bairro — sintetizou esta, com a dicção cuidada que caracteriza os falantes de outras origens. — Pela Mouraria. — E rebentou uma bolha da pastilha elástica.

Elda não sabia para onde o Rest.2 a atirara, e o topónimo não a ajudava. Afastada dos colegas, encontrara aquela miúda perdida numa esquina, uma espécie de anjo encardido, de bandolete. Ou melhor, era difícil afirmar quem encontrara quem. Naquele momento, Aurélia abria caminho pela manhã fria, sem hesitações.

— Então e os teus pais? — voltou a perguntar Elda. — Podes levar-me até eles?

— Posso. Mas para quê? Não é deles que andas à procura, ou é?

Elda não soube o que responder. Olhou para o fundo da ladeira e, numa estranha concatenação, discerniu na praça os companheiros que buscava.

Não teve tempo de se juntar a eles: Fernão e Carola tinham entrado no eléctrico amarelo, que guinava já nos trilhos.

Instalaram-se os dois no assento vago.

— Olha para eles, não fazem a mínima que estão no Rest.2 — comentou Fernão.

Carola espreitou os passageiros de nariz colado à janela, atentos ao mundo que desfiava lá fora. Como era possível que eles não fossem… Mas não eram.

— Não fazem a mínima porque não existem — e Carola arrumava a questão.

— Parece tão fácil, não é? — Fernão levantou-se do lugar, aproximou-se de uma adolescente, puxou-lhe o rabo-de-cavalo.

— Ei! — gemeu ela, voltando a cabeça com ar incomodado.

O rapaz fez uma careta a Carola, como se tivesse demonstrado uma evidência.

— És tão estúpido. Para é que foi isso? Magoaste-a!

— Qual é o problema? Ela não existe — disse Fernão, de volta para o assento.

Carola sentiu-se enfurecer. Que lógica doentia. Ia para rebater quando uma voz imperativa os recriminou em surdina:

— Querem dar mais nas vistas? — Era uma rapariga mais velha, óculos escuros, cabelo pintado de branco com raízes pretas à mostra. Estava sentada no banco atrás do deles, a fingir que lia o jornal. — Porque é que demoraram tanto?

Carola e Fernão entreolharam-se. Uma maluca?

Mas uma maluca decidida. A rapariga apontou para um prédio, decretou:

— É aqui. Vá, desçam comigo.

Era um edifício pintado de azul.

A janela do primeiro andar dava para a rua, os cabos do eléctrico ondulavam. Dentro do quarto, Brísida seguia a reunião dos pássaros no céu. Não era prédio de habitação, a mobília de pinho e a reprodução de Van Gogh não enganavam. Pouco antes abrira a porta e espreitara para o corredor, para ter a certeza. Estava numa daquelas pensões decadentes da Baixa. Sentou-se a um canto do colchão mole, angustiada com as paredes brancas, sem se decidir a abandonar o perímetro. E se fosse um ponto de encontro com os colegas? O candeeiro rosa a imitar mármore estava lascado, e a mesa de cabeceira não via espanador de pó havia tempo. Podia abrir as gavetas se quisesse.

Então, três pancadas na porta anunciaram o fim da espera. Antes que ela pudesse dar ordem de entrada, a maçaneta rodou, mas, em vez dos companheiros, entrou com desenvoltura no quarto um rapaz negro, de fato e gravata. Nunca o vira na vida, mas nada do que se seguiu a chocou. Era como uma sucessão de passes esperados, aquilo que fazia sentido. O rapaz pousou uma pasta no chão, desenlaçou a gravata; depois avançou com mãos que a conheciam, se reencontravam nela, e deu-lhe um beijo.

 

*

           

— Tudo bem, ’mor? — perguntou ele outra vez, enquanto lhe passava os dedos pelas costas. Brísida estremeceu. Ele tinha uma voz quente, doce. Delicada, mas voz de homem, sensual. Só por aquela voz tinha vontade de deixar correr a ficção.

Ajeitou-se na cama, confirmou:

— Tudo. Podemos ficar só assim?

Estavam estendidos um ao lado do outro na colcha puída, inteiramente vestidos. Gastão, assim se chamava, descalçara os sapatos luzidios. Sabia ler os sinais: Brísida usara de gestos brandos, acalmara-lhe os ímpetos. E estar só assim também era bom. Estreitava-a contra si, fazia-lhe chegar ao ouvido uma respiração regular, pacífica.

— Diz-me só, não estás preocupada, não? — E beijou-lhe a testa duas, três vezes, enquanto aguardava uma resposta que não vinha. Insistiu: — Já te disse, linda, tu estás na lista, só tens de esperar um bocadinho mais. Não te deixo para trás. Confia.

Brísida esforçou-se por sorrir, transmitir optimismo. A história escapava-lhe, mas não se inclinava a pô-la em causa. Aceitava uma realidade transitória, que apesar de tudo existia, e em que era estimada por aquele rapaz.

— Não estou preocupada, confio em ti — tranquilizou-o. Através dos raios que invadiam o quarto, via-se a poeira levitar. — Mas estar aqui deprime-me. Preciso de sair. Importas-te?

Entretanto, na recepção, a rapariga de cabelo branco proclamava:

— Não há como sair. Um compromisso é para sempre.

A Fernão e Carola aquilo soava como um aviso. Mas ele, que se decidira a ver onde levava a situação, concordou:

— É o que eu digo sempre. É ou não é? — e solicitava Carola.

Já a colega mantinha-se de semblante carregado, avaliava. Até que a cortina verde atrás do balcão escorregou e apareceu um homem de cara avermelhada, gasta pelo álcool. Olhou para eles com ar dubitativo, depois perguntou à rapariga maluca:

— São eles, Sirius? Tão novos?

— São eles. Não te deixes impressionar, estão preparados. Não estão?

— Preparadíssimos — declarou Fernão, e o tom de gozo era nele tão natural que já nem se identificava. — Vamos a isso.

O putativo alcoólico alçou o tampo do balcão que o separava deles, aproximou-se, como para os cheirar. Fixou Carola durante mais tempo, com a pálpebra que tremia. Depois, passou-lhe a mão calejada pelo rosto, quase um gesto de família.

— Bem. Isto não será esquecido — outra sentença grave. Carola assustou-se.

Na rua, longe dali, Bartolomeu e o rapaz de traços médio-orientais caminhavam agora lado a lado. Galgavam vielas íngremes, ambos de sobretudo negro, enganando o frio com o esforço da subida. O outro assegurou:

— Mesmo que queira: impossível esquecer. Esta cidade mete-se na cabeça. Por mais anos que viva.

Teria vinte, vinte e um anos. A diferença sentia-se, mas não era relevante.

— Tens mesmo de partir? — perguntou Bartolomeu.

— Já falámos sobre isso. Vá lá.

O rapaz sem nome cortou por uma travessa que afunilava e onde, àquela hora, o sol ainda não chegara. Passos firmes, trazia um mapa interiorizado. Algumas paredes continham rastos de inscrições, caladas com uma demão de tinta branca. A dada altura, a rua era ocupada de um lado e doutro por marmanjos que encostavam os pés às portas de prédios devolutos. Quando passaram por eles, Bartolomeu viu-os levarem as mãos aos bolsos, baixarem a voz enquanto exibiam pastilhas para propor negócio: «rital?», «chipon?».

— Não, obrigado — retorquiu Bartolomeu, numa voz hesitante.

Não, obrigado?! — imitou o companheiro, estupefacto. Nem esperara que saíssem daquela zona: caiu numa gargalhada, capaz de chegar a todos os ouvidos. Tinha um riso franco, de quem está em casa e nada teme. Um plebeu de verve aristocrática.

Não era o único dono do bairro.

— Quem era aquela gente? Amigos teus? — perguntava nesse momento Aurélia a Elda.

— Amigos… não sei. Talvez, sim. Tu tens amigos, na escola? — tergiversou ela.

— Eu não vou à escola — informou a outra, com paciência, como se tivesse de lhe explicar o básico. Tinham chegado a uma praceta onde vendedores ambulantes recolhiam mercadoria. Algo luzia entre as pedras. — Olha, arroz!

E a menina acocorou-se, a recolher os bagos nas mãos, animada.

— Não vais comer isso, pois não? — alertou-se Elda.

Aurélia lançou-lhe um olhar indignado, quase feroz.

— Deves julgar que sou parva. Claro que não vou comer esta porcaria. — Mas continuava a encher os bolsos com os grãos. — É para misturar ao veneno dos ratos.

 

*

 

Tinha tiradas assim, que lhe ocultavam a infância. Olhos grandes, expeditos, aptos a mover-se de uma situação à outra com à vontade. Mas diante das montras das lojas deixava-se enfeitiçar por minudências.

— Espera, assim não consigo acompanhar-te — pediu Elda.

Agora, Aurélia distanciava-a de um metro ou dois, como se se tivesse cansado da brincadeira.

Via-lhe balançar o cabelo escuro, entrançado, onde refulgiam reflexos dourados, uma consequência do sol ou talvez efeito pretendido. Elda imaginou-a de cabeça para baixo a embeber o cabelo de um qualquer produto, com uma bacia entre as pernas, ajudada por uma irmã mais velha. A nitidez da cena impressionou-a, chegou a tentar situá-la no tempo: semanas antes, mês e meio?

E então foi como se uma evidência cruel se abatesse sobre ela.

É um robô, pensou. O termo era impreciso, mas no fundo correspondia à essência da questão: a miúda não existia, e de certeza não existira semanas antes. Aquele mundo, o bulício da cidade na manhã, a pequena Aurélia e o seu casaco de flanela: não passavam de uma criação do Rest.2, um alimento para a sua mente — ou da sua mente. O mesmo valia para aqueles fios de cabelo que ondulavam a compasso com o vento, e onde talvez habitassem piolhos.

Bartolomeu levantou os braços, simulou que se pendurava nos ramos da árvore. Não sabia o que fazer consigo mesmo. O outro sentara-se junto ao tronco, embrenhado em pensamentos, duas pedrinhas na mão. Porque estavam juntos? Sentia-se o usurpador de uma história alheia, um intrujão. E não falavam de nada: um silêncio carregado de vivências que para ele eram desconhecidas.

— Mas voltas, não voltas? Depois? — resolveu-se a perguntar.

Era impossível escapar ao tema da partida iminente. O rapaz levantou a cabeça.

— Não há perdão para um desertor. Sabes bem. — Tinha um ar quase zangado, de quem via a vida sonegada. A pergunta de Bartolomeu ofendia-o. — Ouve, não tomo esta decisão de ânimo leve. Sabes o que me disse o meu pai há dias? Que, se eu desertasse, se alistava ele.

Bartolomeu deixou cair os braços. Não sabia o que responder.

— O estupor!... — rosnou o companheiro, de novo com o ar absorto. — Se é coisa que se diga a um filho. Não me lixe: vá, faça o que lhe apetecer. Amanhã já pode tirar a farda do armário. A ver se me verga… Por mim, pode morrer no meu lugar.

E batia uma pedra na outra, à espera que soltasse faísca. Bartolomeu agachou-se, disse:

— Tens razão. Desculpa, não volto a falar disto. Prometo.

Era um sol frio que batia nas lajes da Praça do Comércio, mas bastava para aquecer Brísida. Os colegas talvez tivessem revisitado a capital no Rest.2, mas para ela as ruas de Lisboa eram uma estreia. Ocupava a maior parte do tempo no mundo virtual a estudar e os momentos de distracção que se oferecia eram raros.

Gastão não dissera nada, mas via-se que aquele passeio não estava previsto. No início, Brísida ainda esperara que ele lhe estendesse a mão, como se espera por um pedido de namoro. Mas, de semblante apagado, mãos nos bolsos e capucho enfiado na cabeça, o rapaz fumava a um intervalo de distância.

Não era conveniente que o vissem com ela, percebeu.

E, aos poucos, aquele desvelo, a tal protecção que lhe garantira, o amor tão terno que oferecia, foram perdendo a magia.

No banco de trás do mini vermelho, Carola levava os olhos postos na nuca imóvel do homem de cara avermelhada, que conduzia em silêncio, concentrado. Sentada ao lado dele, Sirius ia dando indicações.

— Quanto tempo é que isto dura? — sussurrou Carola, em direcção a Fernão.

— A ligação?  Não sei, é o dia inteiro?

Mas Marcello avisara-os de que as horas ali não correspondiam necessariamente ao tempo real. Ela suspirou. A mão que aquele homem lhe passara pelo rosto deixara uma marca invisível. Agora, à medida que se afastavam do centro, sucediam-se prédios feios, terrenos vagos. Porque não aproveitara para escapar quando o veículo parara nos sinais vermelhos? Não havia razão, mas agia como refém.

Trocou um olhar com o colega, que observava a paisagem. Era incapaz de dizer se ele sentiria a mesma coisa.

— Ali — indicou Sirius, com voz seca, enquanto uma sombra a obscurecia.

A indicação era para o condutor, mas Carola e Fernão esticaram o pescoço. Do centro da cidade não dava para ver, mas aquela Lisboa também tinha uma muralha.

 

*

 

Do interior do carro, Fernão contemplava com uma raiva calada os azulejos toscos do prédio, naquela zona degradada de Campolide. Era a sua morada. Se atravessasse a rua e entrasse no edifício, bastaria subir as escadas para chegar ao apartamento onde vivia desde o início do mês: um buraco húmido e escuro, com brechas nas paredes, canos à mostra e vidros rachados. Ao chegar a Lisboa, um agente conduzira-o ao local, recordara-lhe que a Bóreas lhe cedia as instalações por um ano e recomendara cuidado para não danificar a propriedade. Parecia uma piada de mau gosto, feita a título pessoal — e que agora o próprio Rest.2 se encarregava de repetir.

A muralha ficava ali ao lado, mas não se percebia o intuito: nenhuma cobertura sobre a cidade, nenhum perigo aparente.

— É este prédio — afirmou Sirius, e cortou a interrupção de Carola com uma mão. — Não há perguntas. Os explosivos estão na mala. É entrar e fazer o trabalho. Sim ou não.

Carola sentiu o estômago dar voltas. Já não era uma brincadeira. Tinham de fugir dali, e se Fernão abrisse a porta do carro, ela seguiria. Mas o rapaz parecia prisioneiro do olhar enlouquecido de Sirius. E respondeu ele pelos dois:

— Sim.

Os passos na nave da igreja retumbavam, inquietos, no que Brísida interpretou como um primeiro sinal de enervamento. Fora ela a insistir para se refugiarem ali. Agarrava com as mãos o banco de madeira, hesitava. Ajoelhar-se ou não. Uma postura aprendida, familiar, mas de que se achava arredada desde que chegara à capital.

Gastão foi sentar-se enfim ao seu lado.

— Tenho de ir embora, desculpa.

— Achava que tinhas a manhã — queixou-se ela, sem saber porquê.

— Desculpa — repetiu, e deu-lhe duas palmadinhas nas costas da mão.

Viu o corpo dele levantar-se, mover-se, como uma sombra. Ia desaparecer da sua vida, onde se detivera apenas uma manhã, mas isso ele não sabia. Não sabia nada: na cabeça dele, se é que tinha consciência, haviam de voltar a ver-se, talvez no dia seguinte, numa pensão da Baixa. Consideraria apenas que aquelas tinham sido horas perdidas, um capricho da parte dela, remediável. E não era justo.

— Gastão… ouve, não quero que me ponhas na lista.

— Hã?

— Não quero. Esquece isso. Não voltes a procurar-me, está bem?

O olhar dele perante as palavras imprevisíveis traduzia desorientação, mágoa até. Talvez ele não tivesse culpa, talvez não. Mas, ainda assim, ela levantou-se e avançou em direcção à porta sem olhar para trás, com a sensação de que se livrava de um peso.

Havia em frente mais umas escadinhas, mas desta vez Elda parou.

Aurélia já subira meia dúzia de degraus quando notou a ausência. Deu meia volta, foi ter com a companheira de passeio.

— Então paraste aqui?

— Parei. Agora, apetece-me descansar um bocado.

Estudou as feições da criança que tinha à frente. A animosidade desaparecera, e não havia sinal de birra. Aurélia estava pronta a partir. Era evidente, agora, que não precisava que Elda tomasse conta dela.

— Já percebi. Tu ficas bem sozinha. Podes ir, não há problema.

A miúda acenou com a cabeça, exibindo uma espécie de orgulho. Levou a mão ao bolso onde guardara os grãos de arroz, à procura de alguma coisa.

— Toma — e estendeu a Elda um gancho de cabelo às flores coloridas. — Para te lembrares de mim.

— Eu… Obrigada.

Não teve tempo de dizer mais nada. Aurélia escapuliu-se pelas escadas, como um gato. Elda ficou sozinha, com aquele objecto piroso nas mãos.

Bartolomeu viu surgir o miradouro por entre as árvores, ao fim da rua. Com um grito de euforia, o companheiro largou a correr. Foi apoiar-se nos ferros, a beber a vista esplêndida. Por momentos, Bartolomeu invejou aquela energia, embora soubesse que também a tinha. Passara o dia com sensações contraditórias assim.

Perfilou-se ao lado dele. Dava para ver o frio nos telhados molhados das casas.

— Lisboa é o meu suplício — o rapaz parecia querer gravar na memória a cidade que se preparava para deixar. — Levo-o comigo para onde for. Tu sabes, não sabes?

Lançou-lhe uma mirada enigmática. Era uma promessa, mas ao mesmo tempo uma coisa diferente, como um testemunho importante, ou um repto.

— Eu sei.

Mas sabia mesmo? No seu lugar, tomaria ele alguma vez a decisão de partir?

Não conseguiu aguentar o olhar, fechou as pálpebras ao sol da manhã. Compreendia que se tratava de uma despedida, e sentia-se estupidamente comovido. O rapaz era mais do que uma projecção: naquela realidade existia mesmo, tratava-se com certeza do seu melhor amigo, mas nem um nome tinha para lhe dar.

— Como é que te hei-de chamar? — perguntou, com a voz embargada.

— Temos o mesmo nome — disse o outro.

A resposta intrigou-o, reabriu os olhos, e as suas retinas apreenderam mil riscos coloridos. Era de novo noite, e a humidade reflectia uma mudança. Regressara ao barco, ao ponto de partida. Era Brísida quem se apoiava no seu ombro, numa intimidade confusa, que queimara etapas para se instaurar. O fogo de artifício rasgava o céu, iluminava as cabeças dos passageiros. O rosto da colega, tão próximo, tornava-se azul, laranja, rosa. Os outros encontravam-se ali dispersos, de novo todos menos Tiago.

— Que coisa estranha, estive em Lisboa — sussurrou Brísida, sem retirar a mão do joelho dele. Podia sentir-lhe o perfume doce. — Conheci uma pessoa…

— Eu também — disse Bartolomeu.

O frio ali instalava-se nos ossos.

 

5

Marcello passou a bebida àquela mulher elegante que, sentada de pernas cruzadas no sofá da sala, agradeceu e fez o gesto de brindar. Ele correspondeu com a energia possível, tentando não deixar transparecer apreensão. Não era todos os dias que se recebia a visita de um membro do Conselho da Nação em casa — e isso geralmente não augurava nada de bom.

— É por causa do Tiago? — perguntou o tutor, ainda em pé.

Morgana Derves sorriu.

— Não se pode dizer que o tacto seja o seu ponto forte, pois não?

— Desculpa. — Marcello pensou em desviar-se do assunto, mas o mal já estava feito — O Tiago vai levar mais tempo do que os outros. É assim o Rest.2. Não é logo se queremos. Mas ele está a adaptar-se, ele é um bom…

— Não perca o seu português com o meu neto. Ao longo da vida, só criou sarilhos por onde andou e aqui não vai ser diferente. Na minha opinião, é uma escolha sem sentido, mas lavo daí as minhas mãos.

— A escolha não é mea, foi o…

— Foi o Rest.2, pois claro. E o sistema escolhe de forma inteligente, como é sabido — interrompeu Morgana, com um sorriso de desdém.

Marcello sabia que não estava numa posição fácil. Os membros do Conselho aceitavam as imposições com relutância. A Bóreas tinha poder, mas fora obrigada a revelar a razão pela qual aqueles seis jovens não podiam ser substituídos: os impulsores tinham sido seleccionados pelo próprio Rest.2 para o seu auto-aperfeiçoamento.

— É um conceito interessante — acrescentou Morgana. — Sabe, senhor Galvano, aqui em Portugal, e naturalmente não digo que seja um caso excepcional, o Conselho da Nação é composto com base na meritocracia. Isso faz-me pensar. Eu tenho dois netos. Um deles o senhor conhece, o Tiago. A outra, a Teresa, trabalha em Copenhaga para a Bóreas. Ora, a minha neta demonstrou desde criança possuir um quociente de inteligência muito superior ao normal. Estudou na Europa; teve uma formação bem melhor do que a do Tiago. Duvido que haja no país meia dúzia de pessoas com mais conhecimentos sobre o funcionamento desse mundo em que o senhor tanto crê. Mas quem é que o Rest.2 escolheu? Foi a rapariga altamente qualificada ou foi o irmão dela, que aliás nem sequer consegue estabelecer uma ligação?

— Não sempre podemos compreender as escolhas do Rest.2.

— Oh, por favor, não me venha com esses discursos de fé.

— A sua neta pode ser a melhor engenheira do Bloco. Mas não falamos de uma viatura a necessitar de mecanista. O Rest.2 não precisa quem o compreende; precisa aqueles impulsores. Os seis.

— Pois saiba que o Conselho preferia que se contentasse com cinco. Não, não estou a falar do Tiago. Há planos já estabelecidos para um elemento da vossa equipa de impulsores, como lhes chama. Bartolomeu Trenas.

Marcello ouviu o nome com surpresa.

— Não sei se está ao corrente — prosseguiu Morgana —, mas o Bartolomeu é fértil. Pela sua expressão, vejo que lhe transmito uma novidade. E no entanto, está a ver, há muito tempo que ele sabe disso e está consciente da responsabilidade inerente.

Marcello, de facto, não tinha qualquer informação a esse respeito. Sem dúvida, isso tornava o rapaz muito mais importante. Num mundo cuja população já se encontrava dizimada pela epidemia, a esterilidade tornara-se a regra para as novas gerações.

— Quais planos tem o Conselho?

— Um casamento, como é óbvio. O Bartolomeu já tem uma noiva, que o aguarda em Faro. E a atribuição. Esse rapaz deu provas de um talento notável para a medicina. Como sabe, ou talvez também não saiba, ele é filho de um médico. E ser fértil traz-lhe vantagens em relação aos outros jovens que aspiram à profissão.

— Bóreas tem precedência! Os acordos de Copenaga! — gritou Marcello. Estava escandalizado com a audácia daquela mulher.

— Tem precedência sobre o interesse nacional? Estamos a falar de uma necessidade e de uma urgência. Sem médicos, mais cedo ou mais tarde seremos forçados a abandonar o Sul, arriscamo-nos a ser considerados inviáveis. E sem crianças, como é evidente, não há futuro para o país. Mais vale entregarmo-nos já aos Espanhóis.

A independência de Portugal aos olhos do Bloco dependia da capacidade de ocupar o território, Marcello sabia. Desde o assassinato de Rodrigo Albernaz, o último presidente, o Conselho usava de mão firme para abafar as dúvidas da comunidade internacional quanto às capacidades de autogestão do país. A resolução do conflito energético com Espanha reforçara a imagem de um governo eficiente e limpo, composto por executantes que faziam questão de não tornar o nome público e geriam na sombra os problemas do país. Terminara o tempo dos ídolos.

O tutor fechou os olhos e pressionou as pálpebras com o polegar e o indicador. Procurava recuperar a calma.

— Não pode fazer nada sem guerra com Bóreas. Sabe isso. É o que quer?

— Não, claro que não. Já tivemos guerras que cheguem. Estou aqui em missão de paz. Queira interpretar estas informações que lhe facultamos como uma manifestação de boa vontade. Nós estamos dispostos a aguardar o tempo necessário para que possa levar a cabo este projecto: um ano, como estipulado.

Marcello sentiu um enorme alívio.

— Porém — continuou Morgana —, não podemos comprometer o futuro deste casal. A noiva está sob vigilância da família. Mas o Bartolomeu já não é uma criança. Há certos desejos que se instalam, são as leis da natureza com que temos de fazer contas. Na escola, podíamos proporcionar-lhe orientação, mas isso agora já não está ao nosso alcance. Os pais são idosos, não vão andar atrás dele. E preocupa-me a companhia destes jovens: basta-me a amostra do meu neto. Um comportamento licencioso pode pôr em risco a fertilidade. Para dizer as coisas com todas as letras, não podemos deixar que ele se envolva em relações sexuais com nenhuma rapariga durante este ano do projecto. Estou a ser perfeitamente clara?

— Perfeitamente, sim.

— Que o Bartolomeu faça o que quiser no Rest.2, isso não tem consequências e não nos diz respeito. Mas seria um erro dar-lhe a ilusão de que a liberdade de que goza no mundo virtual pode ser transposta cá para fora. Essa é uma obrigação que lhe incumbe, senhor Galvano.

— Mas não comprendo… Como quer que eu controlo o que ele faz no tempo livre?

— É simples. Como já acompanha o Bartolomeu durante o todo o dia, nas instalações da Bóreas, o Conselho decidiu que o mais fácil é que ele venha morar consigo. O senhor vai ficar responsável por ele.